CAMPO
JURÍDICO TRABALHISTA DO BRASIL E DE PORTUGAL
Ivan
Alemão
Em
Portugal, a entidade mais parecida com a nossa Associação dos Magistrados da
Justiça do Trabalho (AMATRA) é a Associação
Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP). Na verdade, talvez ela se pareça mais
com a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), pois agrega todos os juízes
e não apenas os trabalhistas. É fácil conhecer a ASPJ: no site http://www.asjp.pt/,
podemos ler seus estatutos e entender o seu funcionamento.
A ASJP, como informa o site, foi criada na cidade de Pombal no dia 13 de dezembro
de 1975, a partir da união da Associação dos Juízes, com sede em Lisboa, e do
Sindicato dos Juízes, com sede no Porto, ambos fundados em 1974, logo após a
revolução democrática.
Mas vou fugir às informações do site, que podem ser
acessadas a qualquer hora por qualquer pessoa. Para entendermos a forma de
organização dos juízes portugueses é preciso conhecer um pouco o campo que a
cerca. Pretendo, assim, expor minha impressão pessoal sobre as diferenças entre
o campo jurídico trabalhista do Brasil e o de Portugal. Por se tratar de uma comparação estabelecida
não apenas por meio de pesquisa científica, mas também por meio de minha curta
experiência naquele país, peço desde já desculpas por excessos que certamente
cometerei.
O fato de a ASJP ser uma associação sindical certamente
chama a atenção dos juízes brasileiros, que não possuem sindicato. Mas, na
prática, não há muita diferença em relação ao Brasil, pois Portugal segue,
hoje, a estrutura sindical pluralista, e ainda: todos os sindicatos só
representam os sócios. Embora nosso sitema sindical seja parecido com o de
Portugal, seguimos uma trajetória invertida quando à representação dos
sindicatos. Enquanto Portugal seguia a Carta del Lavoro, que tornava os
sindicatos representantes de toda a categoria, nossos sindicatos só representavam
os sócios, conforme redação original do art. 612 da CLT. Atualmente ocorre o
contrário: no Brasil os sindicatos representam toda a categoria, conforme a Carta del Lavoro, e em Portugal, apenas
os sócios.
Parece mais fácil estudar o corporativismo português,
pois lá, diferentemente de cá, tudo é mais delineado. Lá, as ordens
profissionais fazem parte da administração pública; já os sindicatos possuem
natureza privada desde a Revolução dos Cravos, em 1974. No Brasil, por exemplo,
a Ordem dos Advogados “presta serviços públicos”, assim como os demais
conselhos profissionais, porém, a lei da OAB de 1994 veda qualquer vínculo funcional ou hierárquico aos órgãos da administração
pública. Trata-se de situação difícil de ser analisada, mesmo para um jurista. Em
Portugal, as ordens profissionais são criadas somente para as profissões que
exigem diplomas, e as câmaras, inexistentes no Brasil, para as profissões de
nível técnico. Lá não se criam nem ordens nem câmaras para profissões que não
exigem formação educacional. Já no Brasil, temos conselhos profissionais
criados por leis para ocupações profissionais que não exigem qualquer formação
educacional, caso dos representantes comerciais e dos corretores de imóveis.
Quanto ao “judiciário trabalhista”, o nosso é muito
parecido com o dos portugueses, embora eles não contem com uma instituição
judiciária autônoma, como a nossa Justiça do Trabalho. É bem verdade que, desde
a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), já não somos tão autônomos, e
isso parece ser uma tendência internacional. Os portugueses não possuem um
Tribunal Superior do Trabalho, mas os nomes “Justiça do Trabalho” e “Direito do
Trabalho” são entendidos da mesma forma que no Brasil.
O campo trabalhista português é muito semelhante ao nosso,
assim como seus livros didáticos da área do direito do trabalho, o programa das
faculdades e as discussões jurídicas. Por esse ângulo, somos filhos legítimos
deles. Podemos estudar a teoria geral do direito do trabalho a partir de uma
bibliografia portuguesa, pois ela é muito semelhante. O que mudam são as leis,
como é natural, mas já estamos acostumados a ler livros desatualizados tal a
rapidez de mudanças de leis e de interpretações dos tribunais.
Uma das diferenças entre Brasil e Portugal no campo
jurídico é o fato de não integrarmos uma União Europeia, onde Tribunais e normas
internacionais não vinculam o juiz (e sim o Estado), mas pressionam a sua conduta
profissional. Com isso, ficaram um pouco distantes as regras baseadas em
amizades que mantínhamos com Portugal até a década de 90. Em função da abertura
do mercado europeu, veio a necessidade de se uniformizar quase tudo nos países
da UE, como a grade curricular nas universidades, que habilitam os
profissionais, as regras éticas e profissionais e, principalmente, a segurança
do consumidor, tudo com muita dificuldade.
Para que o trânsito dos profissionais flua no cenário da Comunidade
Europeia, com idas e vindas sem obstrução, é necessário que as regras
profissionais sejam harmônicas (ou convergentes),
o que interfere no campo jurídico. As
regras processuais, as instituições judiciais e as profissões jurídicas vão
sendo forçadas, paulatinamente, a possuírem regras próprias. A enorme diferença
de idiomas já é um problema, acrescido de outros, de ordem profissional. Temas como tabela de honorários, propaganda, seguro ao cliente por erro
profissional, quebra de sigilo profissional e formação universitária são
importantes no contexto internacional de reciprocidade. A Reforma do Código de
Processo Civil de 2003 em Portugal, a criação do Código do Trabalho no mesmo
ano e, depois, em 2009, ocorreram justamente em função das pressões promovidas
pela Comunidade Europeia.
As profissões jurídicas europeias e
suas atribuições são bem diferentes em cada país, o que dificulta a
uniformização das regras. Por exemplo, a Suécia tem o
advogado (Advokater) e a Ordem dos
Advogados (Sverigesadvokatsamfund),
porém lá é permitido a qualquer cidadão assumir a própria defesa. O Reino
Unido possui os solicitors, os barristers e os advocates. Portugal conta com o advogado, inscrito na Ordem do
Advogado, e o solicitador, inscrito na Câmara dos Solicitadores, que, a partir
da Reforma do CPC de 2003, passou a executar, substituindo parte das tarefas dos
oficiais de justiça. No Brasil, os solicitadores foram extintos, pois não havia
uma organização profissional que os defendesse. Aqui só existe o advogado “faz
tudo”, com baixíssimo controle ético. Embora a OAB lute para controlar o
mercado de trabalho, o que a levou a criar o Exame de Ordem, ela habilita todos
os aprovados da mesma forma, não havendo especialização. Esse Exame não existe
em Portugal, pois lá o acesso à Ordem ocorre de modo natural, por meio de
estágio. No Brasil existiam os dois meios de acesso: por estágio e por Exame, mas,
a partir de 1994, só passou a ser possível pelo Exame.
Outra diferença entre o campo jurídico no Brasil e em Portugal
reside na disparidade de tamanho dos dois países. Enquanto Brasília é distante
e inacessível, em Portugal o trânsito entre universidades, sindicatos e governo
é bem mais ágil. Isso facilita, por exemplo, a discussão sobre um projeto de
lei que exige a opinião de diversos setores, permitindo ainda maior transparência
e maior aprofundamento dos temas abordados.
Minha impressão é de que aqui no Brasil somos pegos de
surpresa a toda hora no que se refere a leis, muitas vezes difíceis de serem
entendidas. Basta ver que, aqui, o canal da Justiça, na televisão, faz grande
sucesso, pois o público deseja compreender os assuntos judiciários. Como juiz
trabalhista, me vejo constantemente sendo surpreendido com leis, súmulas e
outras regras cuja origem não sei explicar e muito menos aonde querem chegar. Parece-me
que aqui no Brasil quase tudo depende de um “bom negócio”, de uma boa
oportunidade ou de uma “sacação”. Trata-se de um país mais novo que ainda não
sabe bem onde quer chegar, enquanto em Portugal eles lutam para manter as
coisas aonde já conseguiram chegar, principalmente com o agravamento da crise
econômica.
Como aqui, em Portugal existem prédios próprios da
Justiça do Trabalho, mas com muito menos pessoas transitando. Lá as audiências
trabalhistas são mais formais, todos com togas, até mesmo os advogados, e são
mais longas, não havendo tanta conciliação. Não é como no Brasil, onde advogados,
partes e estagiários disputam os poucos bancos da plateia, muitos tendo de
ficar de pé. Aquela imagem cotidiana de fila em elevador, de advogado andando
rapidamente para “não arquivar”, com clientes tentando acompanhar seus passos,
é muito difícil de se ver por lá. É como
se comparássemos o nosso ritmo agitado e maciço do samba com o lamento do fado.
A nossa influência africana pelo ritmo e americanizada pelo lucro parece refletir
em tudo, inclusive no campo jurídico. Aliás, lá também não vemos filas em
bancos ou em outras instituições, a concorrência aqui parece ser bem maior.
A formalidade das audiências parece acompanhar a formalidade
legal. No Brasil, tudo, em geral, é mais informal. A informalidade também é
enorme até mesmo na nossa economia, diferentemente de Portugal. Nossas leis são
menos cumpridas em função da informalidade. Aqui o advogado não pergunta tanto
sobre o direito ao seu cliente, mas se ele tem como provar o que diz. Acho que por isso os acordos judiciais são
mais frequentes aqui, tal a incerteza da efetividade do direito. Para ilustrar
essa ideia, em Portugal não encontrei uma expressão própria para o que chamamos
aqui de “salário por fora”, tão comum no Brasil e praticado como uma forma de
“lavar o caixa 2” do capital informal.
Aqui estamos preocupados com a assinatura da carteira,
muito embora esta também possa ser semi-informal, ou seja, com o empregado recebendo
parte de seus direitos “por fora”. Lá não existe essa nossa Carteira de
Trabalho, que qualquer um consegue no Ministério do Trabalho, mas a carteira profissional,
entregue pelos sindicatos aos que preenchem os requisitos legais e burocráticos
para tal. Lá a carteira profissional serve como uma credencial para se ter
acesso ao mercado, e o Estado controla o número de trabalhadores. Já a nossa
carteira, só “vale” se receber a assinatura do empregador.