CLT E CARTEIRA DE TRABALHO – SÍMBOLOS E
REALIDADES
Ivan da Costa Alemão[1]
A
intenção deste breve artigo é aprofundar algumas afirmações que fiz durante a
entrevista que dei à apresentadora da Globo
News Miriam Leitão, e da qual também participou a ilustre ministra do
Tribunal Superior do Trabalho Maria Cristina Peduzzi, no dia 2 de maio de 2013,
em comemoração aos 70 Anos da CLT,
programa reprisado em outros dias e que se encontra no site da Globo News[2]. Agradeço o honroso
convite da respeitada jornalista e a oportunidade de conhecer a ilustre
ministra.
OS SÍMBOLOS DA CLT E DA CTPS
A
Era Vargas (1930-1964) conseguiu, por meio de seus mecanismos de propaganda,
como o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), apresentar como grande
conquista dos trabalhadores a Carteira de Trabalho (criada em 1932) e, depois,
a Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT (criada em 1943), símbolos
extremamente fortes. O resultado foi tão eficaz que até mesmo os opositores da
época ao regime, e muitos estudiosos atuais, aceitaram esse ideal de
importância que entendo estar, hoje, muito acima do que realmente esses
institutos representam, ou deveriam representar.
Minha
preocupação aqui não é analisar a Era Vargas, já amplamente estudada, e sim
perceber os significados da CLT e da Carteira de Trabalho que permanecem em
vigor. Para alguns, eles são símbolo de conquista; para outros, entraves e
privilégios. Não pretendo estar de um lado ou de outro; quero apenas ponderar
que há excesso de valorização desses símbolos.
Afirmei
no referido programa que se hoje em dia as relações de trabalho fossem
reguladas somente pela CLT haveria um “apagão trabalhista”. Embora o texto da
CLT tenha sofrido constantes atualizações, a quantidade de leis que regulam as
relações de trabalho é tão grande que a supera em muito. Não haveria o Fundo de
Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, o repouso remunerado, a gratificação
natalina, o vale-transporte, o seguro-desemprego, a participação nos lucros, a
intermediação de mão de obra, só para citar alguns exemplos. O que temos
atualmente é um complexo legislativo sobre relações de trabalho, talvez até
proporcionalmente maior do que aquele que levou Vargas a criar a Consolidação
das Leis do Trabalho.
A
CLT, inclusive, não trata só do contrato individual do trabalho, mas do
contrato coletivo, da questão sindical, do processo do trabalho, da
Procuradoria do Trabalho e da Justiça do Trabalho, temas que merecem estudos à
parte. A própria uniformização da legislação sempre foi um problema, já que a
CLT trouxe para o seu interior antigas regras corporativistas. O caixa de
banco, por exemplo, trabalha seis horas, mas o caixa de supermercado, oito. Só
a tradição explica essa diferenciação.
A
pequena parte da CLT que trata do contrato individual do trabalho foi
fortemente abalada durante o regime militar, e a parte que trata da questão
coletiva e sindical sofreu significativo revés com a Constituição de 1988.
O
regime militar descaracterizou o contrato individual de trabalho da CLT,
praticamente deixando-o de lado, a começar quando implementou o FGTS, em 1966.
O governo militar, distanciando-se do cenário europeu, que impunha obstáculos
para as demissões arbitrárias, estabeleceu os alicerces legais para o trabalho
precário, a terceirização e a intermediação de mão de obra. Os contratos a
prazo, aplicados indiscriminadamente, como o contrato de experiência, são uma
invenção dessa época e atingiram fortemente a concepção da CLT, germinada sob a
influência da teoria institucionalista, que idealizava os contratos a longo
prazo e as empresas como instituições sólidas. De acordo com essa concepção, o
trabalhador deveria seguir sua carreira numa única empresa ou em poucas, às
vezes até “passando” o emprego para o filho.
A
Previdência Social foi unificada em 1966, permitindo a rotatividade da mão de
obra sem prejuízo da política de assistência à saúde e à aposentadoria. Assim,
o trabalhador de qualquer ramo econômico ou profissional passou a poder ser
atendido pelo INPS e ter de contribuir apenas para esta nova e única
instituição de aposentadoria. Com isso perdeu o sentido a estabilidade decenal,
oriunda dos antigos regulamentos dos Institutos de Aposentadoria e Pensões, nos
moldes corporativistas.
Poderíamos
citar vários exemplos de leis que abriram caminho para contratos curtos,
precários, para a terceirização e a flexibilização, vistos agora como
novidades. Além do contrato de experiência, foram criados o regulamento dos
contratos de estágio, o Decreto-lei nº 200 de 1967, que tratou da terceirização
dos órgãos estatais, e a Lei nº 4.923 de 1965, que permitiu a redução de
salário por meio de negociação coletiva. É fundamental citar a Lei nº 6.019 de
1974, que instituiu a figura do trabalhador temporário, abalando fortemente o conceito
de empregado da CLT. Esse trabalhador com parcos direitos é cedido por seu
empregador (empresa interposta) a uma empresa (tomadora) para lá trabalhar
subordinado a esta. Isso, ao arrepio da CLT, que só via o contrato de trabalho
de forma bilateral: o empregado subordinado somente ao seu empregador.
A
dificuldade de no período FHC (1993-2002) se redigir uma nova legislação, mais
flexível, foi enorme, pois ela já existia, só criando efetivamente a novidade
do banco de horas. As outras novas medidas foram de pouco efeito prático. Os
acordos coletivos de flexibilização é que avançaram, e sem que a empresa
estivesse em dificuldade financeira, conforme exigia a Lei nº 4.923 de 1965.
Aliás, podemos afirmar, tecnicamente, que essa lei ainda “exige” a dificuldade
econômica da empresa para a flexibilização, já que não foi revogada. Ou seja,
com respaldo dessa lei e, depois, da Constituição de 1988, a flexibilização
avançou, mais uma vez deixando a CLT à margem.
Embora
tenha havido enorme repressão política durante o regime militar, não foram
feitas mudanças significativas no âmbito da legislação sindical. A Constituição
de 1988, apesar de ter mantido o imposto sindical e a unicidade sindical,
quebrou o modelo da Era Vargas quando afastou o Poder Executivo da administração
dos sindicatos. Não houve uma transferência de gerenciamento para o Poder
Judiciário, como se pode pensar. O antigo modelo permitia ao Estado planejar,
unilateralmente, o enquadramento sindical, dirimir questões entre sócios e
associação, conceder a carta sindical a quem desejasse, fiscalizar eleições
sindicais, assembleias, prestação de contas, enfim, gerir toda a estrutura
sindical. Já o Judiciário sempre atuou se provocado, quando há conflito de
interesses, e para por aí, pois os sindicatos não vivem sem o controle legal e
judicial em lugar nenhum do mundo.
A CARTEIRA DE TRABALHO
A
lei da Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) tem o valor de obrigar
o empregador a assinar um documento no qual afirma que o seu titular é seu
empregado, o que é bom. Mas o que tem ocorrido é que sua importância foi
supervalorizada pela lei e, mais ainda, pelos costumes e a jurisprudência, a
ponto de o INSS e a Justiça Federal não aceitarem nem uma declaração do
empregador de que determinado trabalhador foi seu empregado, nem tampouco um
contrato escrito e até registrado. Nem mesmo a sentença trabalhista
reconhecendo o vínculo de emprego tem valor superior à Carteira de Trabalho
para esses órgãos. Ou seja, há uma total inversão de valores que extrapola até mesmo
os objetivos da lei.
Não
existe 2ª via de Carteira de Trabalho com
anotações, embora hoje o Ministério do Trabalho obtenha informações por
meio da RAIS dos contratos formais. A Carteira de Trabalho, anotada à caneta, é
extremamente suscetível de se tonar um borrão quando o empregado, obrigado a
carregá-la, toma um banho de chuva, ou quando ela é comida pela umidade
existente em casas humildes. A perda da carteira ou a sua ilegibilidade, por
exemplo pela má caligrafia de quem a anotou, causam danos irreparáveis. A
Previdência Social sempre economizou com essa dificuldade de o trabalhador
comprovar seu tempo de serviço. Parece haver uma enorme má vontade de os
administradores evoluírem neste ponto.
Hoje
o trabalhador que porta uma Carteira de Trabalho sem baixa é discriminado
quando procura um novo emprego. O possível novo empregador não anota a Carteira
de Trabalho enquanto o antigo empregador não der a baixa, o que é ilegal, pois
os contratos são independentes. A chamada “baixa” é um antigo problema do trabalhador,
pois ela gera um controle tácito dos empregadores no mercado. Isso faz lembrar
a antiga regra que existia no trabalho agrícola de que quando um empregado saía
devendo ao seu empregador, se outro empregador o contratasse a dívida era
repassada a este (art. 1.230 do CC de 1916), regra absorvida pela CLT nos
contratos de artistas de teatro e congêneres (§2º do art. 480, revogado em
1978). A atual Carteira de Trabalho já não permite anotações desabonadoras ao
empregado, como era permitido pela CLT até pouco tempo atrás, contudo, ainda
serve como uma espécie de “nada consta” do empregado.
Mesmo
alguns respeitáveis sociólogos consideram que a Carteira de Trabalho é o
passaporte para a cidadania, quando, na verdade, qualquer pessoa pode adquirir
esse documento no Ministério do Trabalho. O acesso à cidadania é o emprego e
não a carteira. Não podemos inverter as coisas: é o emprego que gera os
direitos e não a carteira. A nossa Carteira de Trabalho não é instrumento de
acesso ao mercado, como ocorre com algumas carteiras profissionais que garantem
reserva de mercado, o que a sociologia das profissões chama de
“credenciamento”. Esse tipo de carteira “profissional” significa símbolo de
direito. Não é o caso da CTPS.
A
Carteira de Trabalho no Brasil tem servido como critério de definição de
trabalho formal ou informal, o que não é um critério sólido. É certo que o
conceito de trabalhador formal pelo ângulo da ciência econômica inclui os
autônomos que estão à margem do mercado formal. Mas, considerando apenas o âmbito
dos trabalhadores empregados, existe
infindável quantidade de trabalhadores que possuem carteira assinada e recebem
“por fora”. É uma camada de trabalhadores semi-informais que entra nas
estatísticas como trabalhadores formais. Por que isso existe? O empregado
informal é uma consequência do capital
informal. Tem sido costume empregadores pagarem a seus empregados formais parcelas não contabilizadas,
como horas extras, comissões, prêmios e até mesmo o salário mensal, para dar
vazão ao Caixa 2. Não chega a ser tecnicamente uma lavagem de dinheiro, porque
este dinheiro não volta “limpo” para o empregador, mas é um enorme escoamento.
O empregado, ao fazer compras com esse dinheiro, coloca esse capital novamente
no mercado sem problema.
A
questão não reside no fato de parte dos empregadores não querer pagar encargos
trabalhistas, e sim em não querer pagar qualquer imposto, como ICM, IPI, ISS
etc. Só se combate o trabalho informal nas relações de emprego por meio do
combate ao Caixa 2, que é a raiz da questão. A mera anotação da Carteira do
Trabalho não é suficiente para combater isso, e nem é uma fonte precisa para
demarcar a informalidade, já que esta não atua só de forma horizontal, mas
também vertical.
A INTENSIDADE DO TRABALHO
A
CLT não responde à questão hoje colocada da intensidade do trabalho. Ela foi
criada com a concepção da jornada de trabalho contabilizada com início e fim,
quando o trabalhador marca seu horário de entrada e de saída em algum controle.
Isso ainda é um fato para a maioria dos trabalhadores. Porém, tem aumentado
enormemente a intensidade do trabalho, ou seja, tem havido maior carga de
responsabilidade e maior quantidade de trabalho dentro da mesma jornada, o que
não é respondido por qualquer lei. Alguns juízes condenam os empregadores a
pagar um adicional para compensar essa alteração, mas certamente trata-se de
tema polêmico.
É
o caso da empresa que, para diminuir os custos, demite dois empregados de um
setor que era operado por cinco empregados, sendo que os três empregados que
ficam passam a ter de fazer o trabalho também dos que saíram. Aí há evidente
aumento de carga de trabalho.
As
metas agora são cobradas com maior vigor por meio dos avanços da informática,
mas quando elas são atingidas o trabalho não para, e logo aparecem novas metas.
Não há nenhuma proibição ao empregador de aumentar metas, mas também deveria
existir o direito de o empregado ser compensado com o aumento da intensidade do
trabalho, que lhe causa danos físicos e mentais.
A
CLT tem um artigo que, do meu ponto de vista, é o mais importante. É o 468, que
só permite alterações no contrato de trabalho quando há anuência do empregado e
desde que essa alteração não lhe seja prejudicial, sob o risco de ser
considerada nula.
A
questão não para aí. Hoje vivemos a situação da fragmentação e “confusão” entre
a jornada de trabalho e a atividade pessoal de muitos trabalhadores, e a
tendência é isso aumentar. Esse trabalhador pode laborar em casa ou na empresa
cuidando ao mesmo tempo do trabalho e de afazeres pessoais. Até pouco tempo, o
empregador proibia o empregado de fazer ligações telefônicas, ou de usar a
internet para questões pessoais, mas no tempo corrente, com o uso da internet
pelo celular, é quase impossível controlar o empregado, a não ser filmando-o
ininterruptamente, controlando-o como no Panóptico de Jeremy
Bentham, relatado por Michel Foucault no seu famoso livro Vigiar e Punir. Até mesmo em casa é possível o empregado ser
filmado por meio da internet. Os trabalhadores do teletrabalho estão
transformando suas salas de visita em escritórios, extensão da empresa; muitas
delas já são 100% virtuais, não possuindo sequer endereço.
O
que é jornada de trabalho e o que não é, para muitos trabalhadores, está cada
vez mais difícil de distinguir. Até mesmo a possibilidade de o trabalhador
laborar ao mesmo tempo para dois ou mais tomadores é um fato. Essa novidade
gera boas e más situações, mas, enfim, trata-se de uma novidade irreversível
que a legislação ainda não conseguiu enfrentar, demonstrando o quanto a CLT não
responde q questões atuais, embora seus princípios ainda estejam vivos em
alguns artigos, como o que citei.
TRABALHO DOMÉSTICO
Embora
o tema trabalhador doméstico não esteja inserido no tema CLT, ele veio à tona
no programa 70 Anos da CLT, em função
da recente aprovação da Emenda Constitucional de abril de 2013, chamada de “PEC
dos domésticos”.
Temos
visto a divulgação de que houve equiparação de direitos entre os trabalhadores,
tendo os direitos dos domésticos, finalmente, se igualado aos demais. Basta uma
simples leitura da PEC para ver que isso não ocorreu. A PEC não estendeu a CLT
aos empregados domésticos, nem os igualou aos demais trabalhadores. Apenas
estendeu a eles alguns direitos existentes no art. 7º da
Constituição Federal.
Algumas
informações passadas pela mídia parecem não espelhar a PEC. O art. 7º da CF não
trata, por exemplo, de intervalos para almoço, reza apenas que a jornada de
trabalho é de oito horas por dia e de 44 semanais. É a CLT que trata dos
intervalos. Assim, será preciso uma lei própria para garantir os intervalos.
Em
meio aos debates sobre o assunto, alguns políticos estão fazendo propostas,
como a de reduzir a indenização dos 40% do FGTS concedidos aos empregados
domésticos quando demitidos sem justa causa. Isso só seria possível com uma
nova PEC, pois a indenização dos 40% é uma criação da Constituição Federal de
1988, agora estendida ao trabalhador doméstico por meio do inciso I do art. 7º,
regulamentado pelo art. 10 das Disposições Transitórias da própria
Constituição. Este último artigo é que elevou a indenização do FGTS de 10% para
40%.
Por
fim, o que pouco se tem discutido é que quando há aumento de direitos de
empregados, de modo geral o empregador repassa os custos ao consumidor. No caso
do aumento de direitos dos empregados domésticos, não há consumidor para se
repassar os custos, só restando a alternativa de se aumentar os salários dos
próprios empregadores domésticos. Isso poderia significar que, de forma inédita,
os encargos acabaram desaguando no empregador, no caso o empregador doméstico
ou, na melhor das hipóteses, no empregador deste, por meio de aumento salarial.
[1] Desembargador do Trabalho, tendo ingressado na carreira
em 1993. Professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal
Fluminense (UFF) desde 1995, onde leciona Direito do Trabalho na graduação.
Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito
PPGSD-UFF, Doutor em Ciências Humanas (Sociologia) pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro PPGSA (2008), Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela
Universidade Federal Fluminense PPGSD (2001), graduado em Direito (1987) e História
pela UFF (1980).
[2]
http://globotv.globo.com/globo-news/globo-news-miriam-leitao/t/todos-os-videos/v/veja-o-que-mudou-e-qual-a-realidade-70-anos-depois-da-consolidacao-das-leis-trabalhistas/2551925/