REFORMA DA EXECUÇÃO EM PORTUGAL – JUDICIALIZAÇÃO
OU PRIVATIZAÇÃO?
Revista LTr junho
2007,71-06/705
Revista Trabalhista
– ANAMATRA – Ed.Forense, vol.22, 2007, 2º trimestre
Revista Nacional de
Direito – Vol.114, ano 10, outubro de 2007 (ISSN 1415-5192), pg.11/19
................................................
REFORMA
DA EXECUÇÃO EM PORTUGUAL – DESJUDICIALIZAÇÃO OU PRIVATIZAÇÃO?[1]
Autor: Ivan
Alemão, Juiz Titular da 5ªVT/Niterói-RJ e professor da UFF-Universidade Federal
Fluminense
Resumo: Este
artigo procura analisar os motivos oficiais e econômicos da desjudicialização ocorrida em Portugal
em função da Reforma da Execução em 2003, assim como alguns resultados até o
ano de 2006. Trata da polêmica e recém-criada figura do solicitador de
execução, que passou a exercer algumas das funções dos juízes e dos oficiais de
justiça na execução processual. Demonstra alguns conflitos existentes entre
juízes e solicitadores de execução e entre estes e seus clientes. A
transformação dos cargos de notários em profissionais liberais, ocorrida na
mesma época é analisada de forma comparativa. Procura, por fim, analisar se o
que houve foi realmente uma privatização de algumas atividades judiciais.
A
Reforma da Ação Executiva de 2003[2]
teve como ponto central reduzir a atuação do juiz e da administração pública da
Justiça (em especial a atuação do oficial de justiça), criando a figura do
solicitador de execução. Trata-se de aplicar em Portugal um sistema semelhante
ao da França, onde o huissier de justice
é o agente de execução[3].
Conforme
estudo produzido no Observatório Permanente da Justiça por João Pedroso e
Cristina Cruz (2001), o huissier de
justice francês é um profissional liberal independente. Ele é licenciado em
Direito com uma especialização em Direito Executivo , nomeado pelo Ministério da
Justiça e sob sua tutela. O número de agentes é limitado e o território de sua
atuação é controlado. O Estado vigia a sua atividade a fim de evitar execuções
que fujam aos direitos do devedor. Sua remuneração é paga pela parte e o valor
segue uma tabela. A conclusão do estudo foi favorável à implantação em Portugal
do referido agente[4].
O
Decreto-lei da Reforma, n. 38/2003, criou a figura do agente de execução,
preferencialmente recrutado entre os solicitadores
de execução. Estes, por sua vez, eram os antigos solicitadores, que tinham sua profissão regulamentada há tempos,
quase juntamente com a dos advogados. Um outro Decreto-lei, o de n. 88/2003, de
26 de abril, aprovou então um novo Estatuto dos Solicitadores, revogando o
antigo (Decreto-lei 8/1999, de 8 de janeiro). O prazo para que entrasse em
vigência foi de apenas 30 dias (art. 5º)[5].
Por
esse novo estatuto foram disciplinadas as funções do solicitador e as do solicitador
de execução. Pelo art. 3º, 1, do novo Estatuto, os antigos solicitadores
passaram automaticamente à condição de solicitadores de execução,
independentemente de possuírem ou não todos os requisitos exigidos. Já para os
futuros solicitadores de execução exige-se, entre coisas, ter exercido a função
de solicitador por três anos nos últimos cinco anos (art. 117º, 1, a ). O Estatuto revogado
(Lei 8/99, de 8 de janeiro) já estipulava para a inscrição na Câmara dos
Solicitadores a conclusão do curso de licenciatura em Direito ou bacharelado em
Solicitador (art. 71), além do cumprimento de um estágio de solicitadoria.
É comum “legalizar” os
profissionais práticos (os provisionados) durante a regulamentação de uma nova
profissão. A justificativa é a de não se criar um vácuo na oferta de
profissionais, o que é contornado quando a lei estabelece um prazo longo para
sua própria entrada em
vigor. Isso também havia acontecido com os advogados e mesmo
com os solicitadores na década de 1920.
Mas, na Reforma
portuguesa de 2003, houve um elemento inédito. Esse novo profissional, o
solicitador de execução, assumiu funções públicas, algumas privativas de
juízes, o que, sem dúvida, exige um preparo adequado. A Câmara dos
Solicitadores promoveu, em âmbito nacional, dois cursos de especialização, cada
um em um fim-de-semana, conforme registro em órgão oficial da Câmara (Sollicitare, setembro de 2003). A
freqüência a esses cursos, no entanto, não era uma condição para o exercício da
nova profissão, refletindo apenas uma preocupação da entidade para com uma
melhor qualificação de seus pares.
A falta de preparo dos
novos solicitadores, como não poderia deixar de ser, foi ressaltada por alguns
estudiosos, ao lado da precariedade geral de infra-estrutura para a
implementação do novo projeto. Pimenta (2004, p.84) faz um balanço negativo da
implementação da nova lei, afirmando que se deveria ter esperado mais tempo
para que entrasse em
vigor. Relata ainda que, dada a urgência, a opção foi
recrutar agentes na classe profissional dos solicitadores, que receberam uma
formação apressada. Teixeira (2004, p.29) alerta para a escassa formação dos
solicitadores e a sua natural inexperiência. Freitas (2004, p.8) se refere ao
parco número e à insipiente preparação dos solicitadores de execução, embora
afirma ter havido enorme esforço, nesse sentido, da Câmara dos Solicitadores.
Campos (2004, p.59) diz que a reforma foi apresentada como solução “mágica”,
redundando em fracasso sob muitos aspectos, dentre os quais o fato de que o
diploma entrou em vigor sem estarem criados os meios e as estruturas que o
pressupunham.
Mas
essa função pública que o solicitador de execução passou a ter não o
transformou em funcionário público, manteve-o como profissional liberal. Isso
causa uma dupla função polêmica. Com exceção dos notários[6],
cuja função de fato foi privatizada, o que houve foi a transferência de
atribuições e/ou de competências tipicamente de agentes públicos para um
profissional privado.
O
solicitador de execução tem, pois, “dupla qualidade”, já que é um profissional
liberal encarregado de uma missão de interesse público e que carrega consigo
poderes de autoridade (Gouveia, 2004, p.17), num “misto de profissional liberal
e funcionário público” (Freitas, 2004). É este agente que, após ter sido
contratado pelo credor, dirige o processo, praticando os principais atos, como
a citação, a penhora e a alienação. Na acepção de Teixeira (2004, p.5), “os
exeqüentes descobriram também, surpreendidos, que teriam que encontrar uma
figura híbrida, qual a cabeça de Janus, com corpo público e coração privado (ou
vice-versa), permanecendo todos os custos e disfunções do sistema anterior”.
Para
além de reduzir a atividade pública esta foi, na verdade, repassada em grande
parte para os profissionais liberais. Não se tratou de desregulamentar as
tarefas que eram executadas pelos funcionários e pelo juiz, mas de entregá-las
ao setor privado, com custos adicionais ao cidadão.
Além das questões meramente jurídicas processuais tem-se a
questão da ética profissional, não menos polêmica, já que o solicitador de
execução se vê diante de uma duplicidade de regulamentos: os da administração
pública e os de sua profissão. Para a questão sobre até que ponto é possível
conciliar os dois regulamentos ainda não há resposta definitiva. Podemos, no
entanto, demonstrar dificuldades. É o caso, por exemplo, da obrigação de o
solicitador manter o sigilo profissional de seus clientes. Pode ele prestar
informações ao juiz sem quebrar esta regra?
O
sigilo de informações, a princípio, é estranho a quem exerce função pública,
pois choca-se com as normas administrativas de transparência e publicidade de
informações[7].
Se a função de um oficial de justiça é justamente atestar a verdade e o que
ocorre numa diligência ou ato judicial, o que dizer sobre o sigilo em tais
circunstâncias? Por outro lado, há obrigação de o funcionário comunicar os
órgãos competentes quando toma conhecimento de algum crime ou contravenção.
Não
se trata aqui apenas de incompatibilidade entre a função pública e o sigilo
profissional num sentido amplo, mas num sentido restrito. O médico, ao
trabalhar como funcionário público em um hospital público, por exemplo, mantém
o sigilo profissional e ético sem incompatibilidade. Neste caso, não se trata
de um litígio, pois inexiste uma outra parte agindo em sentido contrário ao do
paciente. Diferentemente do solicitador de execução, o médico não está concomitantemente sendo um prestador de
serviços e um servidor público, embora possa paralelamente manter as duas funções (ter uma matrícula e um
consultório). Por fim, o médico não está sendo pago por uma das partes para
contrariar uma outra. Se já é difícil a compatibilidade da função pública com a
privada inerente ao solicitador de execução, muito mais é ter a imparcialidade de um juiz. Este tem
proibições rígidas de exercer outras atividades profissionais, salvo a de
professor, o que preventivamente evita a parcialidade, contrariamente ao que
ocorre com o caso do solicitador de execução.
A dupla função do solicitador de execução implica, pelo menos,
duas relações novas e conflitantes. Uma entre o solicitador e o juiz; outra
entre ele e o cliente. A questão ética profissional e processual é central
nestes conflitos.
Pimenta
(2004, p.85) levanta a possibilidade de o solicitador, ao acumular processos de
um mesmo cliente, criar uma certa proximidade, certa afinidade, passível de lhe
retirar a dose necessária de independência e autonomia. “Não ignoremos que os
solicitadores de execução são essencialmente remunerados em função dos
resultados e não ignoremos que o negócio dessas entidades exeqüentes (bancos e
financeiras) é dinheiro mesmo.” O autor chega a apontar o risco de,
inadvertidamente, “o solicitador poder converter-se numa espécie de porta-estandarte de certos exeqüentes”
(idem).
O
pagamento pelos serviços do solicitador pode ser penoso para um setor pobre,
mas pode ser uma vantagem para os grandes grupos econômicos, que passam quase a
subcontratar tais profissionais, o que atinge frontalmente o aspecto moral e
ético da função do agente[8].
O solicitador pode até ser empregado do cliente, e o solicitador de execução
pode ser ex-empregado do cliente[9].
A diferença é que já não existe mais a subordinação jurídica.
O
outro ponto de conflito, como dissemos, situa-se entre o solicitador de
execução e o juiz[10].
Neste caso, já existem discussões sobre casos concretos e pode-se observar que
os estudiosos não vêm encarando estes conflitos de forma uniforme. Há
divergências sobre as fronteiras entre os poderes e os deveres do juiz e os do
solicitador. Se o oficial de justiça era subordinado ao juiz, com o solicitador
isso já não é claro.
Não
é uniforme também o modo de avaliar fatos ocorridos, como os casos que vêm
ocorrendo do juiz multar o solicitador de execução sob o fundamento deste não
prestar as informações devidas. Antes da Reforma/2003, os solicitadores não
eram punidos pelo juiz, já que não existia hierarquia ou subordinação funcional
entre eles, como ocorre com o advogado. Verificando irregularidade ética do
solicitador o juiz comunicava o fato ao órgão profissional, no caso a Câmara
dos Solicitadores. As multas normalmente são aplicadas às partes e a terceiros,
que têm o dever de colaborar com a Justiça e agir de boa-fé. Aos funcionários,
o mais apropriado é a instauração de sindicâncias e inquéritos. A questão que
se coloca com a nova função do solicitador de execução é em que situação ele se
enquadra.
O
experiente teórico português Lebre de Freitas (2004, p.8) afirma que os
magistrados, “em vez de verem no agente de execução um auxiliar imprescindível,
parecem encará-lo como um intruso perante o qual há que se manter distância”.
Gouveia
(2004) afirma que existem as seguintes opiniões: os que continuam vendo o juiz
com poder de avocar o processo em qualquer momento; os que entendem que a lei
teve o objetivo de liberar o juiz de tarefas meramente instrumentais ou
burocráticas; os que acreditam que o juiz só deve intervir quando há litígio na
execução; e os mais radicais, que acham que ao juiz cabe apenas anular os atos
ilegais dos agentes de execução, não podendo interferir no trabalho do
solicitador, mesmo que este seja provocado por uma das partes. Esta última é a
opinião da autora, que relata incidentes entre juízes e solicitadores (p.11). A
professora da Universidade Nova Lisboa afirma também que a previsão da multa[11]
ao solicitador de execução aplicada pelo juiz, no caso, seria uma condenação
instrumental à descoberta da verdade, o que é uma sanção grave, sem garantias
específicas de defesa e, em regra, irrecorrível (dado o valor da sucumbência).
Gouveia
(2004, p.29) entende que a dependência
funcional do solicitador ao juiz só
ocorre em casos específicos, basicamente em duas circunstâncias: se o agente
violar direitos das partes ou normas legais ou se, mesmo não violando, as
partes pedirem intervenção do juiz para analisar à luz dos critérios gerais de
oportunidade, proporcionalidade, adequação. Para Gouveia, a atuação de ofício
do juiz só deve ser procedida em caso de violação da lei – no máximo, o juiz
poderia consultar os autos, mas não
impulsionar o processo. O juiz nunca pode substituir o agente de execução.
Gomes
(2004, p.31/32), por sua vez, entende que o juiz continuou com o controle
jurisdicional, porém feito a posteriori. Em alguns casos, o controle do juiz ainda se
dá de forma antecipada, quando, por exemplo, a execução ainda exige o despacho
liminar do juiz (controle prévio).
Em
nosso entender, não se pode mais equiparar o solicitador de execução ao
advogado, já que este não tem função pública, nem ao solicitador tradicional e
tampouco ao funcionário público. No Estatuto do Solicitador está prevista, na
definição do solicitador de execução, a sua dependência funcional ao juiz,
diferentemente do mero solicitador[12].
O significado desta dependência funcional ao juiz é algo novo no âmbito do Judiciário,
e ainda por ser melhor definida.
Resumindo,
afirmamos que o juiz continuou a ter controle
do processo (art. 809 do CPC), mas não a direção
geral. É evidente que a distinção entre uma coisa e outra suscita debates
acalorados. Mas o certo é que muito do que o juiz ou mesmo do que o aparato
judicial fazia passou a ser atribuição de um profissional liberal. O Código de
Processo Civil, por sua vez, permite que um juiz destitua o solicitador de
execução, a requerimento da parte ou de ofício, quando ele viola grave dever
estatutário ou de procedimento doloso ou negligente (inciso 4 do art. 808º). A
destituição é, no entanto, uma medida extrema que naturalmente não abarca
falhas menores do solicitador e/ou exigência maior do juiz.
Se,
até certo ponto, os juízes e a administração da Justiça foram acusados de serem
morosos, agora eles encontram novos obstáculos para agir. Talvez a falta de
iniciativa tenha se transformado em falta de autoridade. O solicitador de
execução passou a ser um novo responsável, no bom ou mau sentido, sem que
houvesse mudanças gerais do aparelho jurídico, à exceção do incentivo ao ganho
de honorários.
2. Os
motivos da Reforma/2003 e os consumidores de justiça
Os
motivos oficialmente apresentados para a Reforma da Execução foram basicamente
três: adequar o país às diretrizes da União Européia, tornar o processo menos
custoso e combater a morosidade processual. O caminho utilizado para se atingir
estes objetivos foi a promulgação de leis para alterar o Código de Processo
Civil e o Estatuto dos Solicitadores, criando-se a nova profissão de
solicitador de execução, como vimos. Porém, para além destes motivos oficiais
apresentados, a Reforma/2003 beneficiou o “grande consumidor” (o investidor) –
que visualiza a Justiça como artigo de consumo – e passou a ameaçar o “pequeno
consumidor” (de artigos de uso próprio), que não deixa de ser potencial
devedor.
A adesão de Portugal à União Européia gerou a obrigação de
uma adequação à política globalizante e neoliberal que vigora na Europa. Os
paradigmas são os da Suécia, França, Bélgica, Luxemburgo, Holanda e Grécia.
Portugal, até então, se aproximava dos modelos de execução da Espanha e da
Itália (Freitas, 2001).
A
União Européia propaga a necessidade de circulação de prestação de serviços,
mas de nada adianta essa bandeira se tais serviços não são pagos corretamente e
com agilidade. A “prestação de serviços” ganhou tanto relevo como solução para
qualquer problema econômico e de eficiência que começou a ser vista também como
salvação do Judiciário. E, diga-se, uma prestação de serviços onde o tipo ideal
é mais privado do que público, onde o mercado funciona livremente, no máximo
sendo regulado por agências semi-estatais.
A
desjudicialização portuguesa que atingiu a execução passou a exigir a contratação
do trabalho do solicitador de execução exatamente da mesma forma como se paga
por um serviço prestado por um profissional liberal, embora com tabela de
preços[13].
A execução passou a ser, definitivamente, mais uma prestação de serviços cuja
eficiência depende de acerto de honorários. Para as grandes empresas, essa nova
despesa significa tão-somente um investimento com repasse dos custos ao pequeno
consumidor, o mesmo não se dando, no entanto, quando este mesmo pequeno
consumidor precisa dos serviços de um solicitador. Além da necessidade de se
adequar às normas correntes na União Européia, a Reforma/2003 atendeu também à
atual política do governo de reduzir substancialmente o quadro de funcionários
públicos[14].
Embora
não estivesse previsto inicialmente na Reforma, nos anos seguintes ela atingiu
os tribunais do trabalho[15].
E com distorção, já que se passou a exigir que o trabalhador pague honorários.
Houve, neste caso, uma extensão das medidas reformistas implantadas sem o mesmo
estudo havido para os demais tribunais. Restou aos tribunais trabalhistas
atenuar os efeitos danosos com uma jurisprudência a favor do trabalhador,
procurando estender-lhe os benefícios da Justiça gratuita. A cobrança de
pagamento de honorários aos pequenos exeqüentes, que, por vezes, reclamam
créditos alimentares, vai contra a proposta do próprio Observatório da Justiça
de Portugal, que, na época, advertiu que “a reforma não deve, por isso, agravar
os custos de litigância, sobretudo para os cidadãos” (Capítulo VIII, Conclusões
Gerais e proposta de reforma, p.47)[16].
O outro argumento para a Reforma/2003, que se refere mais
diretamente ao processo judicial, foi o antigo e habitual: combater a
morosidade da Justiça. As tentativas dos governos de resolver crises ou
problemas relativos à morosidade processual não são novas. Talvez existam desde
que existe o moderno poder Judiciário. O difícil é encontrar um paradigma cujo
funcionamento seja realmente fruto de uma boa estrutura judiciária e não apenas
conseqüência das condições econômicas do país. Seria interessante encontrar uma
Justiça que funcionasse bem em um país da África e não apenas na Suécia.
Os
principais motivos da morosidade residem no próprio direito de defesa de uma
das partes, geralmente o réu, o que não deixa de ser uma conquista dos direitos
de cidadania. A celeridade típica da época do despotismo não é mais bem-vinda.
Assim, a morosidade começou como uma conquista do acusado ou devedor, que são,
historicamente, a parte fraca. O direito não estava tão dividido entre penal e
civil, público e privado. A lentidão profissional, sem sombra de dúvida,
beneficia “alguém”, que pode ser o cidadão detentor de seu direito de defesa ou
um mero beneficiário que já conta com a morosidade processual para obter
vantagens ilícitas, ou pelo menos imorais. O maior problema reside, pois, em
identificar quem tira proveito da lentidão da Justiça, ou seja, quem conta com
a impunidade ao agir ilegalmente. Mas poucos estudos seguem nesse sentido, que
levaria a um diagnóstico sobre os verdadeiros “beneficiários” da morosidade. O
que temos, geralmente, são estatísticas impessoais de ajuizamentos de ações e
“soluções”.
Só
em segundo plano as soluções para a morosidade processual poderiam, de fato,
serem atribuídas às regras de processo, à falta de eficiência da máquina
administrativa da Justiça e aos profissionais envolvidos (advogados, juízes,
oficiais e funcionários de modo geral). Se o problema fosse de reforma legal
seria de fácil resolução. Bastaria copiar as leis dos países paradigmas. Quanto
aos profissionais, estes seguem tradições, rituais e valores que só lentamente
podem modificar.
No
estudo do Observatório Permanente da Justiça de Portugal são tecidas críticas
às reformas anteriores[17]
que também buscaram eficiência e celeridade processual. Segundo o Relatório do
Observatório, “ao lermos as exposições de motivos das leis e os preâmbulos dos
decretos-leis que estiveram na base das sucessivas reformas, torna-se evidente
a disjunção entre o processo de intenções que a eles presidiu e o que é
efetivamente legislado (item 11, p.14)”. Seria o caso de perguntarmos se esta
nova Reforma, de 2003, também não segue o mesmo caminho, o que nos parece que
sim.
No
final da década de 1980 e início da de 1990, muito se defendeu o “acesso à
Justiça”, sob o argumento de que “Justiça tardia não é Justiça” [18].
Junto a essa demanda, aumentaram-se os direitos do consumidor, o que gerou mais
demanda. A própria ação judicial não ficou muito distante de uma prestação de
serviços típica do mercado de consumo. Essas duas campanhas, a de “acesso à
Justiça” e a do “direito do consumidor”, contribuíram fortemente para o aumento
de demandas judiciais. Começou-se então, nos anos 90, a se propor “meios
alternativos”, muitos com mecanismos extrajudiciais e até participação de
leigos. Embora tais foros não fossem novos, foram ampliados e incentivados. A
rapidez, muitas vezes, também significava perda de direito, como acordos
forçados e com desvantagens significativas para a parte mais fraca. Aqui a
“Justiça rápida também não era justiça”.
Apesar
de todos esses esforços e sacrifícios, persistia o engarrafamento na fase de
execução. E nem os acordos nem a ajuda de leigos a facilitavam, visto que os
problemas aí encontrados são delicados e não dependem apenas de “agilidade”,
mas também de o devedor poder pagar. Ou seja, a fase de execução envolve
questões em grande parte sociais, que extrapolam as regras processuais.
A
maioria das execuções em Portugal, conforme informações de um estudo do
Observatório Permanente da Justiça, realizado por Pedroso e Cruz (2001),
referiam-se a cobranças de dívidas, sobretudo provenientes de pessoas coletivas
(89,29% em 1989 e 90,67% em 1999), sendo que o principal credor era o próprio
Estado (70,44% em 1989 e 66,34% em 1999). Nas Conclusões do Relatório do
Observatório, encomendado pelo Ministério da Justiça, afirma-se que, nos
últimos anos, o que se tem registrado é, tão-somente, a emergência de novos
litigantes freqüentes, como, por exemplo, operadoras de telemóveis e de TV a
cabo. O que significa que os tribunais estão sendo intensamente mobilizados por
pessoas coletivas com capacidade econômica para poder gerir, de forma racional,
a sua litigância (p.22, item 23).
Quando
o beneficiário da morosidade do Judiciário é o indivíduo pobre e sem
influência, não há repercussão no cenário político. Mas quando grandes
credores, como bancos, vêem seus títulos serem lentamente executados, a pressão
sobre o Judiciário cresce. Cobra-se eficiência do tribunal como se este fosse
uma empresa produtiva que gerasse resultados estatísticos em termos de
produção: a justiça fordista. As
críticas neoliberais apresentam as empresas privadas como mais eficientes, por
isso as propostas de privatização acabam surgindo naturalmente.
O
incentivo ao consumismo, fundamentado na liberdade de mercado, fez com que a
lei viesse a regular de forma mais detalhada os direitos do consumidor. O
alargamento do crédito foi uma necessidade do capital de ampliar o mercado para
atingir setores mais pobres que não tinham liquidez. O aumento do consumo gerou
aumento de crédito e, como conseqüência, das dívidas, nem sempre pagas. O não
pagamento é habitualmente absorvido pelas empresas em sua projeção de
inadimplementos, mas quando este se torna sistemático ameaça o próprio
empreendimento.
Embora
todo o discurso adotado pelos adeptos das privatizações siga no sentido de
defender o pequeno consumidor privado, oferecendo-lhe melhores serviços, a
Reforma da Execução apresentou um visível efeito inverso, já que o
“prejudicado”, no caso, muitas vezes acaba sendo justamente o pequeno devedor.
Essa agilização da Justiça que vai contra o pequeno devedor possibilita aos
bancos emprestar mais e mais para um segmento antes pouco explorado. Gomes
(2004, p.27) vê na Reforma uma resposta à “crise do mundo empresarial”. A
Revisão do CPC de Portugal de 1995/96 (Decretos-lei n. 329-A/95, de 12 de
dezembro, e n. 180/96, de 25 de setembro) procedeu a “um alargamento
significativo do âmbito da exeqüibilidade de documentos particulares assinados
pelo devedor”, suprimindo o requisito do reconhecimento notarial, entre outras
coisas. A intenção já era dar celeridade ao processo, evitando-se burocracia.
Mas a agilização na confecção do título do crédito só aumentou a exigência na
execução. Instaurada numa fase do processo e não na outra, a celeridade cria,
inevitavelmente, entupimento. E este chegou na linha final do processo, na
execução, que já não depende apenas dos operadores do Direito e sim de o
devedor possuir recursos. O que independe da eficiência do solicitador da execução.
Ainda
segundo Gomes (2004), a ineficiência da ação executiva continuava a ser
considerada um dos fatores prejudiciais ao funcionamento do sistema econômico, agravada pelos
fenômenos da massificação e da facilitação do crédito de consumo, com o
crescente endividamento dos particulares, e pela crise do mundo empresarial. Isto
a ponto de ser tida como um dos nódulos da alardeada crise da Justiça. A
comprovar essa tese, segundo o autor, estava o número de pendências das ações
executivas (em 1 de janeiro de 2002, cerca de 516.757), para não citar os
números que sempre engordaram a estatística das execuções abortadas (p.27/28).
3.
Privatização?
Parece
haver consenso de que houve desjudicialização
e até desjurisdicionalização[19]
na Reforma da execução judicial portuguesa. Mas essa desjudicialização se
processa nos moldes da privatização? Seria a mesma coisa?[20]
Ou uma coisa não teria relação com outra? Certamente o tema está longe de obter
uma resposta final, por ser novo. Até onde podemos chegar, a resposta depende
da interpretação que se dê ao texto legal. Vamos por partes.
Inicialmente,
devemos observar que não estamos falando, literalmente, de privatização dos cargos de juiz ou de oficial de justiça.
A profissão de solicitador de execução, não sendo antes pública, não poderia
agora ser “privatizada” (sentido literal e restrito), como no caso dos
notários.
A
questão reside em saber se as “atribuições funcionais” dos juízes e oficiais de
justiça foram privatizadas, além de serem apenas “transferidas” para o setor
privado. Em outras palavras, esta “transferência” é total, definitiva, paralela
(concorrente)? Qual sua essência? Não seria a primeira vez que a lei, ou órgão
público por previsão legal, delega poderes ao setor privado. Essa é uma prática
comum que todos conhecem. Ocorre com os notários privatizados, quando têm que
atestar com fé pública, e até mesmo com os juízes arbitrais[21].
Em suma, os agentes privados têm exercido atribuições públicas, mas geralmente
de forma efêmera ou muito especial, diferentemente do solicitador de execução.
Torna-se, assim, difícil uma comparação com outras experiências.
Outro aspecto que devemos levar em conta ao tratar da hipótese de
privatização é que, além das regras de direito administrativo, estamos falando
de “direito processual”, que é eminentemente público e possui regras próprias
muito rígidas. Tratando-se basicamente de “litígios”, as regras do
contraditório exigem firmeza e imparcialidade, diferentemente das jurisdições
voluntárias das meras homologações de transações, que seguem trâmites meramente
administrativos mais facilmente. Mesmo na execução, são infindáveis os litígios
com conotação cognitiva por vezes envolvendo terceiros, e, como sabemos, alguns
casos são muito mais complexos que os da tradicional fase de conhecimento. Por
isso, quando se discute a liberdade e o dever do juiz de interferir na
execução, sabe-se que essa liberdade e esse dever ocorrem num nível diferente,
por exemplo, daquele que ocorre com os notários ou outros órgãos burocráticos,
em que o juiz só deve interferir se houver provocação do suposto lesado.
Esta
questão de o juiz depender de ser provocado ou não é que nos parece relevante
para caracterizar uma eventual privatização ou não. Não conseguimos, no caso
concreto da Reforma de Execução de 2003, levando em conta o envolvimento do
direito processual, ver outro termômetro que não este. Embora as citações
teóricas que expusemos neste texto não tenham sido relacionadas diretamente com
o tema “privatização” e sim com a “desjudicialização”, tomamos a liberdade e assumimos
o risco de concluir que os teóricos que colocam o juiz dependente de provocação
para agir na execução seguem a direção conclusiva de privatização das
atividades judicantes.
Já
as análises que concluem que o juiz pode intervir de ofício a qualquer momento
na execução vão no sentido conclusivo da não privatização. Acreditamos que, com
o tempo, será difícil sustentar análises intermediárias que geram dúvidas nos
conflitos entre juízes e solicitadores e entre estes e seus clientes. É certo
que com a prática futura, levando-se em conta a jurisprudência e as tradições
locais, estas questões processuais se definirão melhor. E ficará mais claro se
Portugal precisa mesmo seguir o que vem sendo considerado paradigma para a
União Européia.
BIBLIOGRAFIA
CAMPOS,
Isabel Menéres, (2004), As questões não
resolvidas da reforma da acção executiva, Revista Subjudice, n. 29,
outubro/dezembro 2004, publicada em maio de 2005
CAPELLETTI, Mauroe GARTH,
Bryant, “Acesso à justiça”. Porto Alegre, Fabris, 1988.
FERREIRA, António Manuel
Carvalho de Casimiro, Trabalho Procura
Justiça – Os Tribunais do Trabalho na Sociedade Portuguesa, Almedina,
Coimbra
FREITAS,
Lebre José, (2001), Os paradigmas da
Acção Executiva, Revista da Ordem dos Advogados, 2001, II,
........................(2004),
O primeiro ano de uma reforma executiva
adiada, Revista Subjudice, n. 29, outubro/dezembro 2004
GOMES,
Manuel Tomé Soares, (2005), Balanço da
Reforma da Acção Executiva – Benefícios e desvantagens da alteração do
paradigma da Acção Executiva, Revista Subjudice, n. 29, outubro/dezembro
2004, publicada em maio de 2005
GOUVEIA,
Maria França, (2005), Poder Geral de Controlo, Revista Subjudice, n.
29, outubro/dezembro 2004, publicada em maio de 2005
PEDROSO, João e CRUZ,
Critina, (2001) “A Acção Executiva: caracterização, bloqueios e propostas de
reforma”, www.opj.ces.uc.pt
PIMENTA,
Paulo, (2004), Reflexões sobre a nova
acção executiva, Revista Subjudice, n. 29, outubro/dezembro 2004, publicada
em maio de 2005
TEIXEIRA,
Paulo Duarte, (2004), Apresentação da
Revista Subjudice – Justiça e Sociedade, de out/dez, n.29
[1]
Agradeço a CAPES por ter criada as condições para a elaboração desta pesquisa.
Agradeço as informações fornecidas pelo juiz Diogo Ravara e pelo advogado
António Garcia Pereira, ambos de Lisboa.
[2] O Código de Processo Civil,
Decreto-lei 44.129, de 28.12.1961 (que substituiu o CPC de 1939), após já ter
recebido as reformas de 1995/96, sofreu a de 2003 por força do Decreto-lei 38
de 8 de março, com entrada em vigor em 15 de setembro do mesmo ano. Este
Decreto-lei foi alterado pelo Decreto-lei 199/2003, de 10 de setembro, para
certas retificações e, mais tarde, pela Lei 14/2006, de 26 de abril, que
modificou regras de competência territorial.
[3] “Agente de execução” é a
designação geral do profissional liberal que atua na execução. “Solicitador de
execução” foi o profissional liberal designado especificamente no caso
português, sendo aproveitado o antigo “solicitador”, como veremos a seguir.
[4] Neste
estudo propõe-se a adaptação, em Portugal, do Huissier de Justice existente na França, Canadá, Romênia, Polônia,
Estônia, Lituânia e Hungria. Os autores aconselharam um profissional licenciado
em Direito, Economia ou Gestão nomeado e certificado pelo Ministério da
Justiça. Ainda sugeriram que tal profissional fosse chamado de “agente oficial
de execução” ou, de forma mais abrangente, “agente oficial de cumprimento de
obrigações (ou de créditos)”. Porém, os solicitadores é que viriam a ser
utilizados.
[5]No ano de 1926, logo após o
golpe salazarista, procedeu-se a criação da Ordem dos Advogados. A seguir foi
realizada a Reforma do Judiciário (Decreto 13:809 de 22 de junho de 1927,
substituído no ano seguinte pelo Decreto 15:344 de 12 de abril), quando a
profissão de advogado foi regulamentada detalhadamente e criada e regulamentada
a profissão de solicitador juntamente com sua Câmara, órgão semelhante a uma
ordem profissional. No Brasil também existiu o solicitador (não o de execução),
mas, não sendo criado um órgão que representasse a profissão, esta foi aos
poucos perdendo força e sendo preterida totalmente pela profissão de advogado,
que possuía uma ordem profissional forte.
[6]A
Ordem dos Notários foi criada em 2004 (DL 26/2004 de 4 de fevereiro) juntamente
com seu Estatuto (DL 27/2004, de 4 de fevereiro, logo alterado pela Lei
51/2004, de 29 de outubro). Num plano geral, houve uma inversão de valores:
enquanto os solicitadores passaram a ter funções públicas, os notários passaram
do âmbito público para o privado.
[7] Além do princípio geral de
publicidade dos atos do Direito Administrativo, os atos do processo judicial
também devem ser públicos em função das normas processuais. Há a exceção do
segredo de justiça, mas, mesmo aqui, não se omitem à outra parte fatos e provas
que interfiram no julgamento.
[8] Aqui se torna
“transparente”, legalizado e obrigatório o que antes era ilícito e imoral: o
pagamento feito por muitos advogados para que o oficial cumpra o mandado com
agilidade, o que às vezes até já entrava no orçamento dado ao cliente.
[9] O
art. 10º do Estatuto do solicitador permite que ele seja empregado, embora o
art. 103º procure preservar os deveres deontológicos do mesmo. Tratando
especificamente do solicitador de execução, o Estatuto (item 2 do art. 121º)
considera como impedimento “a representação judicial de alguma das partes,
ocorrida nos últimos dois anos”, o que nos parece pouco.
[10]
Poderíamos estender este ponto de conflito a outros funcionários públicos, mas,
em todo caso, a decisão final seria tomada pelo juiz que tem o controle jurisdicional.
Especificamente em relação ao oficial de justiça, função que não foi extinta, o
solicitador passou a ter uma competência concorrente. Agora o oficial de
justiça atua quando não existir um solicitador disponível que possa ser
designado para um processo de execução (art. 808, 2, do CPC).
[11] A multa é aplicada em caso
de “violação do dever de colaboração com a verdade” (art. 519 do CPC de
Portugal).
[12]
Artigo 116.º do Decreto-Lei n.º 88/2003, de 26 de abril: “Definição: o
solicitador de execução é o solicitador que, sob fiscalização da Câmara e na
dependência funcional do juiz da causa, exerce as competências específicas de
agente de execução e as demais funções que lhe forem atribuídas por lei”.
[13] Ironicamente, as tabelas de
honorários são amplamente combatidas pela União Européia. O “Relatório sobre a Concorrência nos Serviços
das Profissões Liberais (COM/2004/83 final) não considera sequer que os
preços fixos máximos protejam os
consumidores, porém vê como exceção o caso dos notários, em que a regulação dos
preços está associada a outras medidas regulamentares, como restrições
quantitativas e proibições à publicidade” (item 36). Mas, recentemente a
Autoridade da Concorrência de Portugal vem combatendo a tabela dos notários,
entre outras coisas (ver “Projeto de
Recomendação” sujeito à consulta pública até 27.10.2006 http://www.autoridadedaconcorrencia.pt/vImages/Projecto%20sobre%20notariado%20%20consulta.pdf).
[14] No estudo do Observatório
Permanente de PEDROSO e CRUZ (2001), onde se propõe a Reforma, um dos motivos
apresentados para o surgimento da nova profissão de solicitador de execução é o
de “aliviar o orçamento do Estado, através de delegação de uma atividade de
Estado em profissões independentes” (p.184). Antes do processo moderno, na Roma
antiga e no Brasil colonial, as execuções eram feitas por contratados que
recebiam percentuais de 10% (dízimo), daí seus atos serem chamados de dizimação, já que iam pelos campos
expropriando bens a favor da Coroa. Isso demonstra que a proposta de delegar
essa função a um profissional privado não é novidade. Na Antiguidade parece que
a execução funcionava, mas parece também que não agradava muito aos produtores.
[15] A
Reforma foi feita no Código de Processo Civil português e o processo
trabalhista possui código próprio (atualmente Decreto-lei 480/99, de 9 de
novembro).
[16] O
Ministério da Justiça de Portugal havia encomendado ao Observatório Permanente
da Justiça de Portugal – órgão do Centro de Estudos Sociais (CES) da Faculdade
de Economia da Universidade de Coimbra (http://opj.ces.uc.pt/)
– estudos sociológicos e jurídicos que dessem fundamentação à Reforma. Os estudos,
diga-se logo, não incluíram os tribunais do trabalho, embora o Observatório
tenha estudos específicos sobre o tema.
[17]
Segundo o Observatório, em Portugal as reformas ocorridas no sistema de
administração da Justiça após a Constituição de 1976 podem ser agregadas em
três períodos: o período de 1977
a 1987, em que se procedeu às reformas judiciárias
necessárias à dignificação e democratização do poder judicial e ao corte com o
sistema judicial vigente durante o Estado Novo; o período de 1987 a 1999, dominado pela
controvérsia sobre os tribunais de círculo e pela crescente desadaptação dos
tribunais ao crescimento exponencial da procura; e o período de 1999 até a
atualidade, em que se extinguiram os tribunais de círculo e se registrou uma
tentativa de adaptação da oferta de Justiça à procura crescente, através da
disponibilização de mais meios físicos e humanos e do reforço da
informatização. Assim como da incorporação na política pública de Justiça das
idéias de simplificação processual e de desjudicialização, em especial através
da criação de meios alternativos de resolução de litígios (Item 10, das
Conclusões Gerais do Capítulo VIII, p.13).
[18] Serviram como verdadeira
cartilha, neste sentido, os estudos de CAPELLETTI e GARTH (1988). A
preocupação, no entanto, não era nova. Praticamente todas as chamadas “reformas
processuais” são apresentadas para atacar a morosidade processual. Assim também
foi, em Portugal. No
prefácio do Código de Processo de Trabalho de 1963 (Decreto-lei n. 45.497 de
30.12) dizia-se: “a justiça do trabalho tem de ser rápida, sob pena de não ser
justiça”. Ver a propósito, Ferreira
(2005, p.215).
[19] Segundo Lebre de Freitas
(2001, ps. 543-545 e 550-552), “fala-se de desjudicialização
quando o tribunal não tem de intervir e de desjurisdicionalização
quando, dentro do tribunal, é dispensada a intervenção do juiz”.
[20] Embora a desjudicialização e a privatização no
neoliberalismo podem se confundidas em muitos aspectos, a primeira depende mais
da importância do Judiciário e do juiz na sociedade, enquanto a privatização
está mais relacionada com os aspectos administrativos e econômicos dos órgãos e
profissões. Teixeira (2004, p.5) preferiu o termo “semiprivatização” para
designar o que ocorreu em Portugal com a Reforma da Execução.
[21] Os juízos arbitrais só
atuam no processo de conhecimento diversamente do solicitador de execução, o
que dificulta uma comparação melhor. Por outro lado, só quando os juízes
arbitrais são obrigatórios é que poderíamos de fato vislumbrar uma
desjudicialização e/ou privatização, caso contrário a situação está mais
relacionada com a transação. A arbitragem embora antiga nunca conseguiu
sobrepor-se ao judiciário, sendo vista mais como uma válvula de escape do
“peso” do Judiciário. A exceção talvez seja no direito coletivo do trabalho,
quando ela é obrigatória.