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Livro: A esquerda no Direito do Trabalho



A ESQUERDA NO DIREITO DO TRABALHO: discursos, fatos e desencontros


Ivan Alemão



SUMÁRIO

Introdução
1. A esquerda brasileira a partir da redemocratização
2. Resistência do marxismo a assumir a via jurídica
3. As fases do “direito de esquerda” e a via jurídica no Brasil
4. Análise de dois casos de luta
4.1. Negociado sobre o legislado
4.2. Terceirização
5. O Direito do Trabalho no Brasil a partir da década de 1960
6. Função ampliada do salário e repasse da mais-valia
Referências bibliográficas



INTRODUÇÃO

O objeto deste livro é o elo histórico da esquerda com o Direito do Trabalho. A partir do processo de redemocratização na década de 1980, a esquerda brasileira entrou em contato de modo profundo com a legislação trabalhista, organizada nas décadas de 1930 e 40, e a disciplina acadêmica do Direito do Trabalho, formalizada doutrinariamente na década de 1950. Esses são os fatos históricos que motivam este estudo, nos quais se incluem ainda duas grandes reformas trabalhistas: a do regime militar, na década de 1960, e a do governo Michel Temer, em 2017.
A esquerda é tratada neste estudo como um aglomerado de ideias simbolizadas por amplos discursos. Nesse aglomerado, o marxismo é a corrente de pensamento que possui uma teoria organizada e coerente. O marxismo sempre defendeu que as transformações sociais a favor dos trabalhadores dependeriam de mudanças econômicas, sendo que os próprios Marx e Engels combatiam a revolução pela via jurídica. Nesse sentido, apresento a evolução da teoria marxista sobre o direito por meio de seus principais teóricos: do Marx original até os teóricos acadêmicos do pós-Segunda Guerra, passando pelos marxistas da Revolução Soviética de 1917.
Minha hipótese é a de que, no Brasil, ocorreram desencontros entre a teoria e a prática do marxismo, cuja consequência foi um elevado grau de disseminação de discursos em comparação ao baixo grau de realizações. Na década de 1980, a aceitação da via jurídica e eleitoral no marxismo do país não foi acompanhada de uma autocrítica formal, mantendo-se o antigo discurso pré-revolucionário, embora com uma prática nos limites do capitalismo. De um discurso radical em que se aguardava a tomada do poder por um caminho violento, a esquerda passou a adotar uma prática bem mais humilde com pretensões participativas nos governos capitalistas, mas sem alterar o tom radical. Reivindicações por melhores condições de vida de grupos sociais de trabalhadores ou de minorias foram induzidas com persistente tom de intransigência.
Acredito que os fatos históricos mencionados levaram a esquerda a contabilizar novas derrotas, se compararmos a quantidade de seus projetos com as suas poucas realizações no seio da classe trabalhadora. A constante radicalidade do discurso da esquerda pode ter aberto espaço para conquistas eleitorais, gerando um longo período de governança do PT no país, mas com realizações pouco perceptíveis no âmbito da legislação do trabalho. O antigo discurso de resistência, brotado em meio à ditadura militar, persistiu mesmo quando a esquerda esteve no poder. E sem deixar muito claro se a resistência era às forças neoliberais, embora estas estivessem formalmente na oposição, ou ao próprio governo petista, que era sustentado por uma coalizão com quase todos os partidos então existentes.
Alguns dos principais motivos para tais desencontros entre teoria e prática dentro da esquerda são aqui apontados. Adianto que um desses motivos reside na tradição da própria teoria marxista. Em parte pelas mudanças sociais e econômicas ocorridas no período, que estimularam novas demandas não exatamente provindas da classe operária. Em parte pela própria opção da esquerda marxista de abandonar a sua habitual organização, centralizada e disciplinada, sem uma autocrítica satisfatória.
Para demonstrar minha hipótese, analiso a trajetória da via jurídica da esquerda brasileira, que desaguou fortemente no Direito do Trabalho, embora não apenas nesse ramo do direito. Exponho duas tendências, ainda que de forma implícita: a via alternativa e a via reformista.
Com esse tema e esse roteiro, faço uma breve análise da atuação da esquerda frente aos projetos de lei a respeito do negociado sobre o legislado e da terceirização, que centralizaram grande parte da literatura e dos debates na área do Direito do Trabalho nas últimas décadas. Tais projetos foram expostos dentro de um campo litigioso entre a esquerda e os neoliberais. Esses embates revelaram que dentro da esquerda existem vertentes com perspectivas distintas, seja entre sindicalistas e demandantes de causas trabalhistas individuais, seja entre segmentos sociais diferentes de trabalhadores, como servidores públicos e terceirizados, seja entre correntes sindicais que disputam o poder.
Em seguida, faço uma dissertação sobre as relações atuais entre capital e trabalho, a exploração econômica e a relação de dominação entre empregadores e empregados, sugerindo algumas proposições sobre a garantia salarial e o direito ao trabalho.

Março de 2019





1. A ESQUERDA BRASILEIRA A PARTIR DA REDEMOCRATIZAÇÃO

O que normalmente se considera “esquerda” varia muito de época para época e de país para país. Trata-se de uma concepção que nem sequer possui um conceito preciso[1]. A esquerda pode ser identificada com uma posição bem definida teoricamente, uma postura de mera rebeldia, a defesa de um discurso ou até mesmo uma determinada maneira de ser. O período analisado vai do início da redemocratização no Brasil, que culminou com a Constituinte de 1988, até 2017, com a Reforma Trabalhista.
O discurso é uma mensagem direta e curta, como uma palavra de ordem, um convencimento por vezes induzido por símbolos, por carisma. Pode ser sustentado pelo medo generalizado de que algo muito ruim aconteça se determinado comando não for atendido. E esse convencimento pode ocorrer até mesmo sob a ameaça silenciosa de discriminação. Prevalece na esquerda brasileira o discurso. Mas não resta dúvida de que a teoria marxista, por ser a mais estruturada, é a que mais costuma respaldar esse discurso. Portanto, dentro da esquerda existe o marxismo como um núcleo bem teorizado, e ao redor dele uma série de outros segmentos que se identificam por meio do discurso.
A quantidade imensurável de textos marxistas, a sua utilização para justificar movimentos sociais e revoluções e a sua adoção como referência bibliográfica nas academias universitárias parece ser um fato posto sem questionamento. Assim como a esquerda critica o mercado capitalista, fato concreto, os opositores da esquerda atacam a teoria marxista e algumas de suas experiências práticas. Considerar Maquiavel, Thomas Hobbes ou Kant estruturantes de uma doutrina de direita seria, certamente, exagerado. No século XIX os anarquistas, socialistas e comunistas identificavam a doutrina cristã, ou mesmo a instituição da Igreja Católica, como a responsável pela crença de que o trabalhador deveria se conformar em ser explorado. Hoje essa visão está fora de questão e muitos segmentos religiosos se identificam com a esquerda. Ainda há antagonismo filosófico entre a religião e o materialismo dialético, mas tal embate não representa motivo prático que impeça a identidade dos discursos sobre postulados que independam de crença pessoal.
Por vezes a direita é vista simplesmente como o “capital”, o burguês, o mercado, o fascismo, o imperialismo, o Estado, a Igreja, a repressão e a discriminação. Ou seja, o inimigo da esquerda não possuiria uma doutrina uniforme. O próprio Marx não tinha um inimigo bem definido. Pode-se dizer que seus inimigos eram todos aqueles que professavam ideias diferentes das suas. Suas críticas, em geral, se dirigiam de forma imediata a outros socialistas e até a eventuais aliados. O inimigo maior era a “classe burguesa”, convicção decorrente do próprio materialismo histórico, que não dava valor ao papel do indivíduo na história.
Por outro lado, Marx e Engels definiam muito bem os indivíduos que os criticavam (Pierre-Joseph Proudhon, Ferdinand Lassalle, Karl Eugen Düring etc.)[2]. Encontramos facilmente os clássicos marxianos nas livrarias brasileiras, mas não achamos com a mesma facilidade os livros dos personagens neles criticados. Isso resulta da natural demanda do consumo, e é incontestável que nesse caso, ironicamente, o mercado dê mais chance a Karl Marx. Também é comum nos livros marxistas haver um índice onomástico elencando as personalidades referidas, acrescido de pequena biografia sobre os que são acompanhados, ao longo do livro, de adjetivos como “reacionário”, “traidor”, “revisionista”, “pequeno-burguês”, a partir de critérios geralmente fixados pelos editores. É como se houvesse um monólogo marxiano.
O risco de Marx ser interpretado de forma dogmática é grande, não só pela transformação de suas ideias em “seita”, seara pela qual muitas vezes a esquerda caminhou, mas até pelo tom do discurso dessa esquerda, que não mede esforços em humilhar os adversários. Como se uma polêmica em torno da definição exata de “trabalho” ou de “classe” fosse decidir a vida ou a morte de milhões de trabalhadores. Uma coisa, contudo, parece de fundamental valia na teoria de Marx: a referência à prática. Todo o rigor de sua doutrina era posto em prática, e ele próprio era um homem que, além de pensar sobre a História, participava dela com a mesma intensidade com que escrevia. Assim, para Marx, não bastava interpretar, era preciso transformar, conforme diria nas Teses sobre Feuerbach, de 1845.
Essa marca deixada pelo filósofo alemão é a marca da ciência, onde as teses devem ser comprovadas materialmente e ter alguma utilidade, não devendo se restringir à mera literatura ou a um discurso. Essa essência marxiana parece-me universal. E é com essa essência que hoje procuro fazer uma reflexão sobre a esquerda brasileira, da redemocratização até os dias atuais.
 Como dito, a principal referência teórica da esquerda é o marxismo, mesmo que de modo indireto ou parcial, tal a sua extensão no campo da filosofia, da política, da História e da economia, e tal sua forte influência no campo da sociologia, do direito e da cultura em geral. Mas nem só de marxismo a esquerda é alimentada. O movimento católico, ou parte significativa dele, tem contribuído teoricamente para a ascensão de movimentos populares desde o final do século XIX, sendo significativa sua atuação nas décadas da ditadura militar com a chamada Teologia da Libertação.
Os tradicionais movimentos sindicais ou de classe, como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), que muitas vezes se posicionaram como “sociedade civil” e a favor do “estado de direito” para combater atos autoritários, também se identificam com a esquerda, ainda que ocasionalmente. O movimento ecológico disseminado na década de 1980 compôs algo semelhante à atuação da esquerda, ao menos no que se refere a ações contra grandes grupos empresariais predadores do meio ambiente. Movimentos surgidos nas universidades possuem ainda forte identificação com a esquerda, muito embora não tanto quanto entre as décadas de 1960 e 1980.
Certos movimentos, identificados com grupos de oprimidos ou minoritários, ganharam impulso nas décadas mais recentes posicionando-se como revolucionários no sentido cultural. Entre eles estão o movimento feminista, o movimento LGBT, o movimento negro, as recentes movimentações de imigrantes rompendo fronteiras, as revoltas de vítimas do serviço público e a atuação de órgãos de proteção a vítimas de maus-tratos familiares. Sem falar nos demais segmentos que protestam ou reivindicam em torno de questões de consumo, de idade ou de deficiências físicas, entre outros. Mesmo não tendo cunho ideológico ou político definidos, tais movimentos, pelo fato de serem reivindicativos, passam facilmente para o campo da esquerda, unindo-se à corrente que já possui tradição de luta.
A esquerda no Brasil sofreu transformações naturais, como em outros países. Nas décadas de 1960 e 70, prevalecia o marxismo-leninismo, posição política organizada e centralizada com bastante independência em relação às adversidades decorrentes de mudanças políticas conjunturais. Para enfrentá-las, seus adeptos se utilizavam do método militar de tática[3] (pacífica, violenta, conciliadora, radical, moderada) e da estratégia socialista. Ainda no final da ditadura, os movimentos marxista-leninistas divergiam bastante sobre qual seria a tática mais adequada a adotar.
Uma corrente de pensamento bastante comum entre os teóricos mais próximos do PCB (Partido Comunista Brasileiro) era a que via como necessária a realização de uma revolução burguesa no país, a fim de que se criassem as condições para se chegar à revolução socialista (as chamadas duas etapas, ou etapismo). Já as outras correntes eram mais radicais, pregando uma revolução socialista imediata e aglutinando diversos partidos pequenos, em geral trotskistas e maoístas, além da chamada “nova esquerda”, sob a influência do P.O.U.M. (Partido Operário de Unificação Marxista) da Guerra Civil Espanhola.
O foquismo de influência da Revolução Cubana já fracassara com a luta armada urbana no Brasil. E a guerrilha no campo sucumbira com a empreitada no Araguaia do PCdoB (Partido Comunista do Brasil). Assim, em meados da década de 1970 não mais existia nenhuma ação armada da esquerda no país. Por que digo isso? Porque, como corolário dessa situação, surgiu uma esquerda com elevado grau de discurso radicalizado contra denúncias e com propostas de derrubada de governos, porém sem efetivos projetos alternativos para tanto. Uma esquerda com postura a favor da justiça, mas sem meios claros para implementá-la, com esperança de que o socialismo seria o remédio para tudo, da economia à educação, do trabalho urbano ao rural, de “norte ao sul e de leste a oeste”.
No final da década de 1970 e principalmente na de 1980, já com maior liberdade de manifestação, despontaram opções de luta mais moderadas e legalizadas. Ao lado do ressurgimento do movimento sindical e associativo, houve importantes movimentos sociais, como o da anistia, o da contra a carestia, os de bairro e de mutuários, e o maior de todos, o das Diretas Já. A preocupação da esquerda era sair do isolamento e se firmar como movimento de massa, e a própria legalização dos grupos comunistas já apontava para um caminho jurídico. No final dos anos 1970 o bipartidarismo foi extinto, mas obter o registro de um partido era extremamente difícil, em função da exigência de certo número de filiados e de diretórios espalhados previamente pelo país.
O PT (Partido dos Trabalhadores) conseguiu seu registro legal em 1980 com uma visão de partido de massa, mostrando uma nova via para se chegar ao poder com apoio popular. Os bolcheviques perderam, então, espaço para os mencheviques, desfazendo a linha divisória rígida que distinguia militantes de simpatizantes[4]. O próprio PT, quando surgiu, ainda procurou manter núcleos e militância delineados, mas, com o processo eleitoral de 1982, eles rapidamente foram se transformando em comitês eleitorais de tendências políticas próprias. O modelo de organização foi se distanciando da disciplina bolchevique, segundo a qual eram os intelectuais que levariam a consciência revolucionária aos trabalhadores. Por outro lado, também contribuíram para a fundação do PT estudiosos como o educador Paulo Freire[5] e os teóricos da Teologia da Libertação.
Essa discussão sobre o papel do intelectual serviu de palco para visões antagônicas sobre o método de inserção de militantes de esquerda nas comunidades. O ensinar ou coordenar se distinguiam enquanto métodos a serem adotados pelo educador ou líder em função da postura sobre como deveriam se apresentar ou discursar. A existência da mesa do professor de frente para todos os alunos na sala de aula ou, diferentemente, o círculo de cadeiras em que todos se situam em posição de igualdade, inclusive os professores, demarcavam formas distintas de método educativo.
Além do PT, o PDT (Partido Democrático Trabalhista) foi o único partido de esquerda a conseguir tirar seu registro ainda em 1980. Assim, ambas as legendas puderam apresentar candidaturas próprias para governos estaduais já em 1982, sob a liderança de figuras carismáticas como Leonel Brizola, no Rio de Janeiro, e Luiz Inácio Lula da Silva, em São Paulo. O PCB, que poderia ter tido um papel mais importante nesse momento, por ser mais tradicional e ter experiência eleitoral, estava mobilizado com o conflito interno entre prestistas[6] e eurocomunistas, preferindo atuar dentro do PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro) para não se isolar.
Também dentro do PMDB havia os deputados do antigo MDB (Movimento Democrático Brasileiro) da época do bipartidarismo chamados de “autênticos”, que tinham uma relação próxima com o PCB. Líderes como Ulysses Guimarães e Pedro Simon, embora não fossem de esquerda, tinham uma atuação bem alinhada com velhos comunistas do “Partidão” (PCB) e com artistas famosos de esquerda, gerando uma forte corrente autodenominada “progressista”[7] que se posicionava contra tudo o que era por eles entendido como conservador. Também Fernando Henrique Cardoso, como outros intelectuais independentes, teve influência sobre essa esquerda, chegando a ensaiar a criação de um partido socialista que não chegou a existir. Mais tarde, seria um dos fundadores do PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), espécie de centro-esquerda brasileira.
A campanha das Diretas Já, em 1984, aglutinou todas essas correntes e representou uma frente “espontânea”, já que as oficiais não funcionavam[8]. Essa aglutinação foi essencial para a formação da Assembleia Constituinte, em 1987, e para o seu resultado, em 1988. Depois, durante a campanha eleitoral de 1989, cada grupo seguiria seu rumo, evidenciando que quanto mais o discurso se mostrava radical mais obtinha adesão popular, ao menos em termos de quantidade de votos. Os candidatos à Presidência Fernando Collor de Mello, Lula e Brizola, os mais radicais, foram os mais votados, enquanto outros representantes históricos da democracia e da Constituinte ficaram com bem menos votos na disputa.
Com o processo de redemocratização e da volta da liberdade de expressão, os tradicionais polos de atuação da esquerda — entre os quais o movimento operário/sindical, o movimento estudantil, as missões católicas e as pastorais — tornaram-se espaços de organização, de cursos de formação de lideranças e de execução de propostas. A derrota da esquerda nas eleições presidenciais de 1989, com a vitória de Collor, não permitiu que ela tivesse uma efetiva experiência em governar. Aliás, demorou muito para se concretizar a prática da esquerda no Poder Executivo[9].
Em 1989, o medo de que Lula fosse eleito não era só do presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), Mário Amato, que afirmou que “800 mil empresários deixariam o país”, mas também de inúmeros militantes que se sentiam inseguros com a falta de objetividade programática e de quadros preparados no PT. Se a esquerda tivesse sido eleita naquele momento, o tipo de governança teria sido bem diferente do adotado a partir de 2003[10]. Por outro lado, o próprio governo Collor revelou imaturidade, até porque não possuía um projeto muito definido para o país, já que centrara sua campanha quase que unicamente nos discursos contra os “marajás” e a favor dos “descamisados”. As providências econômicas tomadas por Collor foram traçadas de última hora com a arrogância de quem dizia que mataria o dragão da inflação com a única bala existente no rifle, ou seja, com um só tiro. Na prática, o que ficou do seu governo foi somente a abertura do mercado para produtos importados, como carros e batatas fritas.
Com o impeachment de Collor, seu vice e aliado, Itamar Franco, oriundo do grupo autêntico do MDB, assumiria a Presidência como se fosse outro governo, por exemplo, chamando para ministro da Economia Fernando Henrique Cardoso, reconhecido intelectual de esquerda que seria o grande arquiteto do Plano Real. Esse processo de alianças da esquerda com a direita se tornou uma característica da governança brasileira em época de democracia, mesmo o regime sendo presidencialista. A partir do Plano Real a distinção entre governo de direita e de esquerda passou a ser mais de discurso do que de prática. FHC fez alianças mais à direita, com Antonio Carlos Magalhães, egresso da Arena (Aliança Renovadora Nacional). E Lula, ao longo de seus dois mandatos como presidente, faria aliança com todos os partidos, menos com o de FHC.
Só alguns poucos temas, quando colocados em prática, poderiam ser, efetivamente, visualizados como divergentes entre direita e esquerda, caso do processo de privatização de empresas estatais. Até mesmo a campanha pela ratificação da Convenção n.o 158 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) foi defendida pela oposição de esquerda, mas efetivada em 1996 pelo governo FHC. O seu cancelamento ocorrido no ano seguinte foi por “culpa” do STF (Supremo Tribunal Federal), que entendeu ser ela inconstitucional. Foi um momento de grande euforia na esquerda, já que a estabilidade no emprego “estaria de volta ao Brasil” em total confronto com o que o neoliberalismo defendia. Essa campanha foi, provavelmente, a última em que a esquerda teve a efetiva possibilidade de sair vitoriosa com repercussão no meio econômico contra o neoliberalismo.
A opção dos marxistas em lutar no plano da legalidade, propondo leis e elegendo deputados, não amenizou seu discurso extremamente radical e ofensivo. Não que isso fosse novidade, mas, a partir de então, o discurso se tornou mais retórico do que prático. O grito ficou mais alto, mas sem maiores consequências. Antes, ser apresentado como militante de esquerda era um risco profissional ou mesmo de vida. Mas, depois, ser reconhecido dessa forma era um elemento definidor do lado em que a pessoa estava, como numa torcida organizada.
Se antes o tom para indicar descontentamento com o estado de coisas era mais moderado, devido ao medo da repressão, agora, vestir a camisa e protestar nas ruas era um meio generalizado de expressão, por vezes como se o país estivesse às vésperas de uma revolução. É como se a esquerda brasileira, embora mantivesse o tom leninista radical contra a II Internacional (social-democrata), adotasse o seu programa. Ou até mesmo chegasse às raias do neoliberalismo. Pode-se dizer que a esquerda, ainda que tenha ampliado o número de adeptos, passou a viver praticamente apenas de “denúncias”. Poucos foram os exercícios práticos, entre os quais se inclui a última de peso: a dos petroleiros, em 1995[11]. A falta de uma agenda alternativa por parte da esquerda evidenciou-se após a eleição de Lula, que assumiu o governo em 2003 com um discurso de acabar com a fome e o desemprego, mas sem projetos e quadros técnicos para tanto.
O governo Lula não promoveu nenhuma reforma agrária, além do parco assentamento – que já vinha sendo feito pelo governo FHC. O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) passou a ser um movimento midiático que, eventualmente, aparecia na TV assustando a classe média. O novo governo adotou quase todos os projetos do governo anterior, sem uma autocrítica consistente e sem nenhuma explicação sincera sobre a sua mudança de linha. Houve mesmo certo cinismo político, e podemos dizer que de radical só ocorreu, justamente, a mudança de discurso e de propostas. A única divergência de fundo mais séria com a parca oposição continuou sendo em torno do tema privatização.
A Reforma da Previdência de FHC, atacada com virulência pelo deputado Vicentinho do PT, seria imediatamente aprovada no governo Lula, sem oposição significativa. Anos mais tarde, chegaríamos a ver o PSDB e o DEM (Democratas), da antiga Arena, defendendo o aumento do salário mínimo e o senador Paulo Paim, do PT, velho defensor do aumento, ir contra a proposta. Observe-se também que aquilo que era criticado e não foi adotado tampouco seria reformado. As proposições de intervenção no mercado por meio de incentivos fiscais aos empresários foram aplicadas sem moderação, como os concedidos aos setor automobilístico e ao de linha branca, entre outros, na época em que Guido Mantega estava à frente do Ministério da Fazenda.
O FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), criado ainda em 1990 para sustentar o seguro-desemprego e o abono salarial, ganhou paulatinamente novos objetivos, como o de servir ao combate ao desemprego. Ou seja, foi deixando de ser um benefício ao desempregado para adquirir o papel de criar emprego, educar e combater a fome. Por meio do Codefat (Conselho Deliberativo do FAT), órgão que ainda administra o FAT sob uma composição tripartite (governo, trabalhadores e empresários), rapidamente se aprovava a liberação de verbas vultosas para habitação, educação, empreendedorismo, pesca, complemento de pagamento salarial, entre outras políticas. Pode-se dizer que o FAT foi uma forma fácil de apresentar “programas sociais” acompanhados de propaganda midiática.
O Programa Comunidade Solidária, criado em 1995 pelo governo FHC e tendo à frente o sociólogo Betinho, transformou-se, em 2003, no Programa Fome Zero de Lula. A campanha já era financiada pelo FAT por meio do Proger (Programa de Geração de Emprego e Renda), de 1994. O Programa Bolsa Família, de 2004, foi uma unificação de diversas “bolsas” (Bolsa Escola, de 2001; Programa de Renda Mínima, de 2001; Bolsa Alimentação, de 2001; e Programa Auxílio Gás, de 2002). Tais programas, assim como o seguro-desemprego, representam um marco na política pública por serem as primeiras medidas, de fato, de direitos sociais. Vale dizer, aquelas a que os cidadãos passam a ter direito desde que preencham alguns requisitos legais comprovando a necessidade do auxílio, independentemente de terem contribuído, conforme ocorre no sistema previdenciário.
O Estado de Bem-Estar Social começou realmente a ser implantado no Brasil nessa época, visto que, antes, os benefícios ou eram os previdenciários, que dependiam de o cidadão trabalhar e contribuir, ou eram os trabalhistas, pagos exclusivamente pelos empregadores a seus empregados. Os desempregados e os pobres ficavam na dependência da filantropia. O direito à assistência médica a qualquer pessoa passou a vigorar com a Constituição de 1988, mas não correspondia a um pagamento em dinheiro e sim a um serviço.
Dando continuidade ao combate ao desemprego, o governo Lula buscou valorizar o trabalho do jovem e várias leis foram criadas nesse sentido. Em 2005, por exemplo, o limite de idade para ser aprendiz nas empresas foi estendido de 18 para 24 anos. O Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, assegurava “os direitos trabalhistas e previdenciários” ao aprendiz (art. 65), apontando para a equiparação salarial com os demais trabalhadores. No ano 2000, no governo FHC, já havia sido alterada a Lei do FGTS para fixar em 2% da remuneração o recolhimento a favor dos aprendizes, discriminando-os em relação aos demais trabalhadores, que recolhiam o percentual de 8%.
O governo Lula chegou mesmo a criar uma lei para subvencionar o empregador que contratasse aprendizes, pagando seis parcelas de R$ 250,00 por emprego gerado[12]. Foram criados ainda os programas Bolsa Auxílio e Bolsa Permanência para estudantes, a fim de ajudar o aluno de curso profissionalizante, não limitando sua abrangência aos aprendizes. Diversas leis foram sancionadas buscando ampliar a oferta de aprendizes, mas algumas acabaram alteradas substancialmente ou revogadas logo depois, não cabendo aqui aprofundar o tema.
A redução dos custos de contratação para o empregador sempre foi o discurso usado pelos neoliberais. E, em se tratando de “primeiro emprego”, não se pode dizer que houve “perda” de direito no sentido individual. A perda, no caso, é coletiva e histórica. Se a medida foi para ampliar a oferta de emprego, por outro lado aumentou também a brecha para o trabalho precarizado, pois aquele trabalhador adulto que poderia ser contratado como empregado formal corria o risco de se transformar em aprendiz. Ou, ainda, de discriminar outros segmentos, como o dos idosos, tão problemático quanto o dos jovens e — por que não dizer? — o segmento dos de meia-idade que sustentam filhos pequenos.
As campanhas setoriais ou locais dão margem à divulgação de propaganda de sucesso por meio de uma imagem ampliada, encobrindo prejuízos que as mesmas campanhas podem ter impingido a outros setores. O problema é maior quando a campanha é dirigida a certos setores sem muito critério.
A tendência que se estabeleceu então foi a de incentivar o capital e o mercado, na expectativa de atrair empregos e na esperança de aumentar o salário. Isso não era exatamente uma novidade, já que, em 1994, verbas do Proger–FAT haviam sido alocadas no Banco do Brasil, no Banco do Nordeste do Brasil e na Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) para o setor empresarial. Verbas foram destinadas aos “segmentos da indústria e agropecuária” para a geração e a manutenção de emprego e “renda”, sem critérios bem definidos para a escolha dos candidatos. O governo do PT daria continuidade a essa política de enfrentar o desemprego com financiamento à educação e a empresários. Em 2004, no governo Lula, foram instituídas as linhas de crédito especiais para pescadores (Proger Pescador e Proger Piscicultura). Várias iniciativas semelhantes foram implementadas, mas não pretendo me estender no assunto para não cansar o leitor.
Por cerca de dez anos, boa parte deles durante o governo Lula, quando o petróleo estava com preço alto no mercado internacional, houve efetivo desenvolvimento social. Nesse período, o governo do PT tinha força para realizar qualquer reforma social mais profunda, mas não as realizou. Foi a “década perdida da esquerda”[13]. O governo chegou mesmo a usar o FAT para pagar salário, a fim de que o empregado não fosse demitido.
Poucos meses após o início do segundo mandato de Dilma Rousseff, com a crise econômica já instalada no país e grandes manifestações de rua contra seu governo, somadas à crise detonada pelas investigações em torno da corrupção na Petrobras, foi dado início à política de “ajuste fiscal”. Tal política foi instaurada por meio de duas medidas provisórias (MP n.o 664 e MP n.o 665) no último dia de 2014, tendo como escopo a redução de gastos públicos.
Em 2015, foi expedida a MP n.o 680, instituindo o PPE (Programa de Proteção ao Emprego), com grande repercussão na mídia. O acesso ao seguro-desemprego e ao abono foi restringido e, a partir de então, as empresas em dificuldade econômica poderiam realizar acordo coletivo com redução de salário e de jornada em até 30%. Nesse caso, o FAT pagaria uma compensação pecuniária de até 50% da redução salarial, limitada a 65% do valor máximo da parcela do seguro-desemprego. Esse exemplo indica o quanto a questão do salário, atualmente, apresenta uma complexidade muito maior do que no tempo de Marx, tema que abordarei nos dois últimos capítulos.
No âmbito do direito sindical, nada foi mudado durante os governos de esquerda, salvo a extensão do imposto sindical. Manteve-se a antes criticada MP de 1989 sobre a greve, sancionada no governo Sarney, transformada em lei e ainda vigente (Lei n.o 7.783 de 1989). Na época de sua edição, a MP foi considerada um retrocesso em comparação com a Constituição de 1988. Nada se fez em relação ao imposto sindical, antes radicalmente criticado, depois “tolerado” e, no fim, estendido para as centrais sindicais, o que ocorreria, de fato, em 2008.
O governo Lula, em 2003, criou o Fórum Nacional do Trabalho, que, após infindáveis reuniões, terminou de forma pífia, com duas medidas provisórias que não chegaram a virar lei e nem sequer foram implementadas[14]. A tônica procedimentalista de que os próprios trabalhadores encontrariam as melhores alternativas para si mesmos em meio à discussão em um fórum, além de não se comprovar escondeu a falta de proposta por parte do Poder Executivo e a sua dificuldade em conciliar interesses de líderes sindicais.
Mas o principal resultado desse fórum foi a tentativa de concentrar as decisões sobre questões sindicais no Ministério do Trabalho, o que a esquerda outrora combatia e que motivaria, em 1988, a maior novidade no campo sindical da Constituição: a proibição de ingerência do governo nas entidades sindicais. Ou seja, a proposta final do FNT foi de retrocesso histórico, não chegando, porém, a ser implementada.
Quanto à legislação do trabalho, a criticada CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), chamada por Lula na época das greves na região do ABC de “AI-5 dos trabalhadores”, não sofreu qualquer reforma durante seu governo, apenas pequenas mudanças pontuais. Talvez a lei de maior repercussão social outorgada em sua gestão tenha sido a da permissão para desconto em folha de empregados e aposentados[15]. Um tema sem dúvida polêmico, pois se por um lado a medida permitiu aos trabalhadores conseguir empréstimos bancários, até com juros relativamente mais baixos do que os do mercado, por outro anulou um princípio histórico do Direito do Trabalho, o de que o salário não pode sofrer descontos de credores dos trabalhadores.
Nessa conjuntura iniciada em 2003 e estendida até 2014, propícia a reformas na legislação, a esquerda, paradoxalmente, começou a se posicionar com uma espécie de discurso de resistência, perdendo um pouco o seu caráter ofensivo. Embora o tom do discurso continuasse alto, parecia que a prática demonstrava que não bastava ser governo para fazer revolução e tampouco uma reforma no âmbito do próprio capitalismo. O inimigo oculto, o neoliberalismo, parecia ainda governar o país.
Ao mesmo tempo, contraditoriamente, não havia oposição ao governo, a não ser a do alquebrado PSDB, que mantinha a imagem de oposição reprimida. Ou, ainda, pode-se concluir que o próprio governo era neoliberal. Certamente era um momento para reflexões, mas o discurso de resistência soava mais familiar para a esquerda. A expressão havia sido muito utilizada durante a ditadura militar para dizer que a esquerda sobrevivia, mesmo num período de descenso do movimento popular e convivendo com a repressão. Mas agora o Estado estava sendo governado pela esquerda, e continuar falando em “resistência” soava um tanto estranho. A resistência agora seria provavelmente contra o capitalismo, algo genérico para a atualidade histórica.
É fato que o movimento operário já não despontava mais claramente como setor de vanguarda nas transformações sociais, tendo crescido o setor terciário de serviços e o do funcionalismo. O movimento sindical foi se firmando progressivamente no setor público, incluindo tanto os estatutários quanto os empregados das estatais. O movimento sindical operário do setor privado esvaziara enormemente. Parte de trabalhadores de grandes empreendimentos passou a ser contratada por empresas terceirizadas, mais vulneráveis e com pequena quantidade de empregados fixos, o que não criava condições, por exemplo, para uma assembleia de funcionários na empresa.
Aquela facilidade que o líder sindical tinha de falar em porta de fábrica para multidões reduzira bastante. Poucos setores privados — como o de bancários, sendo que só cerca da metade dos grandes bancos é privada — conseguiram manter alguns movimentos reivindicatórios. Muitos líderes sindicais migraram para a atividade partidária eleitoral. E a esquerda no movimento sindical acabou por priorizar os sindicatos de estatais e do funcionalismo público, atuando em centrais sindicais que possuíam poder político de acesso à máquina estatal (neocorporativismo).
O MST foi o único movimento de trabalhadores do setor privado que cresceu, mas, nesse caso, não se tratava de conflito trabalhista. Embora com discurso extremamente radical, na verdade o movimento se propunha a dividir a propriedade, o que pode até ser uma proposta historicamente avançada, mas que não põe em questão a existência da própria propriedade. Até as reformas de base que o presidente João Goulart defendeu em 1964 seriam consideradas radicais demais para o governo do PT.
Já o setor do funcionalismo público cresceu em número de servidores e de greves. Até policiais entraram em greve. Tais greves terminaram com projetos de lei, e não com negociação coletiva. A esquerda incentivou e se aproximou das demandas não trabalhistas, principalmente as de natureza afirmativa.
A “descentralização do trabalho” afastou a tradicional classe operária da vanguarda da revolução e foi dando margem ao crescimento de outros setores reivindicativos, em especial aqueles com propostas contra a discriminação social[16]. O velho obreirismo fundamentalista da esquerda foi dando lugar a outros “ismos” (feminismo, racismo etc.). Note-se que essas novas demandas, também com elevado grau de radicalização, foram encaminhadas sobretudo para o campo do direito, com plataformas de novas leis de proteção a setores marginalizados, ou mais amplas, com conotação de proteção da cidadania. Se o movimento operário tinha um inimigo bem definido — o patrão —, os movimentos afirmativos não têm tanta clareza de quem seja o seu inimigo, que pode ser governo, uma empresa predadora ou um vizinho.
A concepção de que o acúmulo de lutas isoladas ou efêmeras levava inevitavelmente à transformação social tornou-se um método implícito de a esquerda chegar ao poder. Mas dizer o que se faria ao chegar lá passou a ser um tema fluido, chamado de “progressista” ou “avançado” ou “mais humano” ou “igualitário”. Em outras palavras, um “programa implícito”, com o qual todos da coletividade concordavam, mas que não estava escrito nem definido de fato. Cresceram as tendências evolucionistas, deterministas e até pacifistas, outrora tão criticadas pelos marxistas. Também começou a haver certa miscelânea entre o que dependeria de um projeto de lei ou da economia, do governo ou do mercado. Sem dúvida, porém, prevaleceram as perspectivas de soluções por meio de leis e de governança.
Expressões antes utilizadas pela esquerda, como “massa” ou “povo”, foram substituídas por “cidadão”, revelando uma conotação mais particularizada, fosse do indivíduo, fosse de grupos sociais. Houve grande avanço nesse campo da cidadania, inclusive desmitificando certos tabus sociais. Mas certamente o conflito de interesses no campo geral de classe foi deslocado para o de opiniões, muitas vezes individuais. Ser ou não contra o aborto ou a legalização da maconha não distingue explorados de exploradores, segundo a concepção tradicional do marxismo.
Assim, as perspectivas de promoção de avanços sociais passaram a sombrear as perspectivas revolucionárias pelo ângulo da tomada de poder. As questões culturais e educacionais passaram a ser vistas como mais importantes do que a formação de um partido revolucionário para se atingir a transformação social. Portanto, foi ficando claro para muitos, ainda mais sob um governo de esquerda, no caso do PT, que o poder político não era suficiente para responder às principais demandas sociais.
A mera “politização” das questões sociais, que tanto a esquerda procurava implementar, foi sendo substituída por outras formas de impulso para a conquista de direitos, como a dos tribunais, da mídia e das redes sociais. E a esquerda foi, naturalmente, se modificando, a fim de adaptar seu eixo de atuação a tais demandas sociais. O que vou dizer pode ser questionado, mas é como se a esquerda passasse a praticar o comunismo antes da revolução, a partir de uma inversão entre tática e estratégia. O que, sem dúvida, demonstra que a revolução surpreende.
É certo que a internet facilitou a interação entre as pessoas. Organizações tradicionais, como sindicatos ou associações de moradores, em que a proximidade física era um dado essencial, passaram a conviver com outras formas de interação, não tão organizadas, mas com enorme mobilidade. São muitos os estudos sobre tais temas, motivo pelo qual não me alongarei sobre essas mudanças sociais, que independeram da vontade da esquerda.
Devido a isso, o espaço do Estado começou a ser aproveitado como nunca antes. A própria falta de distinção entre público e privado, que já havia sido apontada por alguns teóricos[17], passou a ocorrer concretamente, tumultuando a superestrutura da infraestrutura. E não se tratava do patrimonialismo, que é quando o uso do público é voltado para o interesse privado de alguns ou é tão extenso e legalizado que perde o senso de imoralidade.
A palavra aparelhamento é preconceituosa, pois sugere uma intenção deliberada de determinado grupo se apropriar de um órgão pré-constituído. A expressão é usada em diversas situações, mas não pode ser generalizada. Melhor falarmos em neocorporativismo, quando as entidades não fazem parte do Estado estruturalmente, atuando em seu interior com independência, por meio de conselhos e comissões e defendendo interesses próprios. É curioso ver como determinadas plataformas antes defendidas por entidades sociais privadas, como os referidos sindicatos e as associações de moradores, passaram a ser defendidas por órgãos públicos ou por ONGs com recursos públicos. Reivindicações como a de passagens gratuitas para idosos e estudantes ou a de construção de vias de acesso para pessoas com deficiências e idosos, entre outros temas de cidadania, acabaram com a rígida divisão entre público e privado, coletivo e individual.
A judicialização da política e da economia e o ativismo judicial colocaram os tribunais no centro da definição de direitos, muitas vezes com questões tão importantes quanto a criação de uma “nova lei”. A técnica do STF de interpretar a Constituição de forma extensiva aumentou significativamente após a Emenda n.o 45, de 2004. Ideais de direitos humanos e de dignidade da pessoa se tornaram tão ou mais relevantes quanto à garantia do emprego. É nessa conjuntura histórica que pretendo confrontar o discurso da esquerda com sua atuação no âmbito do direito dos trabalhadores.



2. RESISTÊNCIA DO MARXISMO A ASSUMIR A VIA JURÍDICA

É comum ouvirmos que o marxismo é rico em filosofia e economia, mas atrofiado em direito. Essa questão exige uma análise mais profunda. O marxismo não tratou de “negligenciar” o estudo do direito — repudiou o direito enquanto meio de transformação da sociedade. Essa é a questão de raiz embutida no marxismo, desde Marx e Engels, não tendo sido totalmente superada por seus futuros correligionários[18]. E não se tratava de falta de conhecimento jurídico, pois ambos eram estudiosos profundos das leis e do direito. O fato é que eles se esforçaram para combater as doutrinas dominantes em sua época que defendiam a revolução pela via jurídica, professada por inúmeros socialistas. A teoria mais conhecida da via jurídica era a de que os operários deveriam ser donos do que produziam, sendo, portanto, roubados pela burguesia.
É conhecida a tese apresentada por Proudhon em O Que é a Propriedade?, de 1840. Além da indagação contida no título, há diversas outras ao longo do livro: Se o trabalho confere direito à propriedade, por que esse direito não era conferido aos trabalhadores? Por que o rendeiro já não adquire, pelo trabalho, essa terra que o trabalho fornecia outrora ao proprietário? Dizem: porque já se encontra apropriada.
Proudhon (1997, p. 98) defendia que “o trabalhador conserva, mesmo depois de ter recebido o salário, um direito natural de propriedade sobre a coisa que produziu”[19]. Todo o raciocínio do pensador girava em torno do conceito de justiça, que, para ele, variava de acordo com a época. Ele adotava também a ideia de direito natural, embora não de forma explícita.
Marx criticou Proudhon em Carta a Schweitzer, de 1865[20], entendendo que, na melhor das hipóteses, sua tese em O Que é Propriedade? consistia “numa noção jurídica de roubo que o burguês faria”. Pois, “o roubo, enquanto violação da propriedade, pressupõe a propriedade”. Para Marx, Proudhon tecia divagações confusas sobre a verdadeira propriedade burguesa.
Outro contemporâneo de Marx, Ferdinand Lassalle, com quem ele chegou a trocar cartas, foi um conhecido teórico da Constituição, à qual deu uma interpretação sociológica. Em uma famosa palestra de 1863[21], ele trata da essência da Constituição afirmando que os problemas constitucionais não são de direito, mas de poder . Distingue a Constituição “escrita”, meramente formal, da “real”, legítima, e aponta para uma terceira, que contenha os dois elementos (Lassalle, 1969, pp. 112, 119).
Marx nunca aceitou esse tipo de projeto jurídico. Não obstante, a esquerda, no decorrer da História, defendeu ardorosamente Assembleias Constituintes contra sistemas autoritários, a exemplo do que aconteceu no Brasil na década de 1980. Mas não se tem conhecimento de nenhum texto de Marx defendendo a atuação em Assembleia Constituinte burguesa. O texto de Lassalle é que foi amplamente publicado no Brasil na década de 1980.
Na preparação para o Congresso de Gotha, em que procurou reorganizar o Partido Social-Democrata alemão, Marx escreveu uma carta aos congressistas do partido conhecida hoje como Crítica ao Programa de Gotha[22], na qual teceu forte crítica a Lassalle. Para este, o trabalho era a fonte de toda riqueza e todos os membros da sociedade teriam direito a receber seus frutos de forma equitativa. Já Marx acreditava que as relações jurídicas surgiam das relações econômicas, e não o contrário.
Ainda contra a via jurídica, cito um artigo escrito por Engels e concluído por Karl Kautsky, O Direito ao Produto Integral do Trabalho Historicamente Exposto[23], em que eles combatem Anton Menger, que também afirmava que a apropriação do excedente é um roubo. Engels e Kautsky combatiam as reivindicações jurídicas, que, segundo eles, começaram a surgir ainda no final do século XVII, na Inglaterra, após o declínio da Igreja e o crescimento do Estado. Para ambos, as primeiras formações partidárias proletárias se mantiveram estritamente no jurídico “terreno do direito”, embora com diferenças em relação ao direito burguês. As reivindicações quanto à igualdade teriam sido ampliadas, buscando complementar a igualdade jurídica com a igualdade social. Porém, esse terreno do direito não possibilitaria eliminar as calamidades criadas pelo modo de produção burguês-capitalista.
Eduard Bernstein, outro teórico, já do final do século XIX e início do século XX, propôs abertamente revisar as teses originais de Marx e Engels, algo raro na época por parte de um marxista. Não à toa foi combatido dentro de seu próprio partido, o mesmo de Kautsky. Bernstein expõe no livro Socialismo Evolucionário, de 1899, uma análise pragmática sobre o processo revolucionário. A grande questão levantada pelo autor é a de que não se deveria esperar a “grande catástrofe do capitalismo” para avançar com a democracia socialista. O autor reduz a perspectiva do “objetivo final do socialismo” em prol de medidas do presente e do futuro próximo. Em seu livro, acredito que o mais importante seja o seu posicionamento sobre o jurídico e o econômico.
Bernstein (1997, p. 87) ressalta que as várias explicações sobre o conceito de socialismo possuem diversas noções jurídicas (igualdade, justiça). Por conseguinte, afirma: “Não é preciso uma intrincada dedução para mostrar que a indicação da natureza jurídica do socialismo é de tanta importância como a sua natureza econômica”. Essa frase, dita hoje, não soaria como sacrilégio. Todavia, por conta dessa ideia, Bernstein foi fortemente contestado, não só dentro do próprio partido como também por Lenin ao combater a II Internacional, embora, nesse caso, o principal alvo tenha sido Kautsky. E, certamente, a via jurídica acabou refutada pela esquerda em geral, muito mais influenciada pelo leninismo.
Com o advento da Revolução Bolchevique em 1917, a discussão sobre o direito centrou-se na possibilidade de uma experiência profunda, prática e duradoura. Os bolcheviques tiveram de enfrentar sérios entraves jurídicos para dar respostas imediatas às demandas da população, da produção e da guerra no país. Os primeiros anos da revolução fizeram com que muitos marxistas mudassem de opinião, ainda que nem sempre de forma assumida. Também ficaria claro que o acúmulo da doutrina marxista ainda era pequeno para ser posto em prática. A dependência da doutrina jurídica à política econômica já não seria apenas uma “tese marxista”, mas uma necessidade imediata por falta de outra efetivamente jurídica. Ou seja, “transferir” as demandas jurídicas para a economia passou a ser algo pragmático, o que não deixa de ser uma forma de determinismo mecânico, ou mesmo evolucionismo, geralmente rejeitado pelos marxistas. O esforço entre os principais teóricos foi grande e as divergências logo apareceriam.
Uma primeira questão que parecia evidente para os bolcheviques era a de que o “direito era burguês” (direito de classe), fazendo parte da superestrutura social (Estado-lei), sucumbiria com a Revolução. Essa premissa contundente, calcada nos textos de Marx e Engels, e também nos de Lenin do período pré-revolucionário, encontrou dificuldade de se sustentar. Isso porque rapidamente se percebeu que a implantação do socialismo exigiria um período muito mais longo do que o previsto e até com recursos de técnicas capitalistas (caso da NEP, a Nova Política Econômica).
Portanto, logo depois da Revolução de 1917, cresceram, ainda que timidamente, as teorias sobre “direito de transição” (ou sobre direito durante a transição), o que representava uma novidade para o marxismo, já que este, embora fizesse uma profunda análise crítica do capitalismo, quase nada apresentava a respeito do direito no processo de transição. Aquela discussão de Marx para o encontro de Gotha abordava questões de um período hipotético bem mais avançado em termos de sociedade, com elevado estágio de consciência da população. E sem eventuais crises econômicas, principalmente de abastecimento de primeira necessidade, sem guerra, sem conflitos internos e sem criminosos comuns[24], adversidades que nem sempre constam nas sociedades utópicas.
A Revolução Bolchevique acabou com o mercado, expropriou a propriedade privada e dissolveu o que era considerado classe burguesa. Mas não acabou com o Estado. E este precisaria de algo semelhante a um “direito”, ainda que se tratasse de um mínimo de regras e de tribunais. O que se traduz como socialismo nos anos que sucederam a Revolução foi, na realidade, um regime planificador de produção e racionador em termos de acesso da população ao consumo.
É notório que muitas ideias, quando postas em prática, perdem sua pureza, cedendo espaço ao pragmatismo. Alguns anos depois da Revolução, foi implantada a política da NEP, que passou a adotar técnica e técnicos antes identificados com a burguesia[25]. Lenin chegaria a adotar o taylorismo, seguindo um ritmo produtivista igual ao do capitalismo[26]. E, no campo do direito, ascenderia um regime autoritário (como era de esperar de uma ditadura do proletariado), mas medíocre no campo alternativo do direito.
Se a propriedade privada e a classe burguesa haviam sido extintas, por outro lado a mais-valia continuava a existir, agora a favor do Estado, que se agigantou. Os chamados “sábados comunistas” na URSS, que correspondiam à atividade voluntária dos trabalhadores em tirar mais uma hora de seu descanso para dedicá-la ao trabalho, isto é, aumentar uma hora da jornada diária, eram enaltecidos por Lenin[27]. Ainda que tais decisões voluntárias dos trabalhadores, decididas por unanimidade, não deixassem de gerar mais-valia.
No campo do direito, o principal teórico da Revolução foi Piotr Stutchka, comissário do povo para a justiça em 1917 e depois presidente do Supremo Tribunal da URSS de 1922 a 1932, quando faleceu. Um primeiro aspecto tratado por esse autor foi o institucional[28]: acabar com o Poder Judiciário, que, segundo ele, representava os interesses das classes possuidoras. Sobre o templo da “justiça burguesa”, ele propôs construir o edifício da “justiça socialista”. Propôs ainda um “tribunal popular eletivo” e tribunais populares locais como instâncias inferiores, com cargos eletivos e compostos por leigos (quase exclusivamente trabalhadores e soldados). Nesse estágio, até a advocacia teria se revelado, quase sem exceção, como inimiga de classe do governo operário e camponês, segundo Stutchka. E ele chegaria a afirmar que a categoria de advogados já fora abolida (Stutchka, 2001, pp. 18, 21, 26).
Quanto ao direito material[29], sustentava que não é possível falar em “direito proletário”, porque o objetivo da própria Revolução Socialista encerrava-se na abolição do direito, na sua substituição por uma nova ordem socialista. Mas o admitiu enquanto fase de transição, uma espécie de “direito especial da época de transição”. Stutchka recusou as iniciativas de juristas e juízes que utilizavam as leis do antigo regime, ainda não revogadas e permitidas por um primeiro decreto sobre o Tribunal (Stutchka, 2001, pp. 22, 43, 47, 56).
Ficou claro que os procedimentos jurídicos de então trataram muito mais de revogar leis antigas do que criar novas. Entre os decretos baixados em 1917, o de n.o 3 aboliu a propriedade patrimonial sobre a terra sem indenização; e o de n.o 31 exterminou os estamentos e os títulos de nobreza de cidadania. O de n.o 263, de 1918, separou a Igreja do Estado. No âmbito das relações de trabalho foi abolida “a liberdade de contratar”, uma vez que o trabalho se tornou um dever. A jornada foi fixada em oito horas, podendo ser estendida caso a produtividade não aumentasse ou caso diminuísse (Stutchka, 2001, p. 58).
No âmbito da família, o direito de sucessão foi extinto, salvo os pequenos patrimônios não superiores a 10 mil rublos. Também foi “abolida a Sagrada Família”, sendo permitido o divórcio, desde que um dos cônjuges assinasse uma declaração. Stutchka faz referência a mais de 778 decretos que compõem os 71 volumes da Compilação dos Decretos e das Disposições do Governo Operário-Camponês, propondo proceder à codificação e à compilação de todo o direito do período de transição numa coletânea sistemática, com o objetivo de ser acessível às massas, na qual incluiu em sua primeira parte a Constituição (Stutchka, 2001, p. 61).
Embora o autor proponha uma codificação, ele reafirma,[30] que a Revolução de 1917 não tinha como uma de suas metas criar um novo corpo legislativo, com Judiciário próprio. Conforme declara, “o Poder Soviético na República Socialista Federativa Soviética Russa é, ao mesmo tempo, um Poder Legislativo e Executivo, bem como um Poder Judiciário” (Stutchka, 2001, p. 52), evidenciando que a tradicional divisão de poderes não existiria. Percebe-se, assim, que não há uma definição precisa sobre como conciliar a organização de tribunais sem corpo legislativo, o que incentiva casuísmos e dá margem a condenações sem a devida imparcialidade.
Com a implantação da NEP, Stutchka[31] teve de aceitar, de modo explícito, um “recuo” nas proposições iniciais da Revolução. Mas ele entendeu que a necessidade maior era ter “bons comunistas e não bons juristas” (Stutchka, 2001, p. 105), sugerindo, portanto, o desenvolvimento da “consciência comunista acerca do direito”. Aqui vemos que da posição inicial sobre o direito ser burguês, inicia-se uma tentativa de se criar pelo menos uma “consciência” sobre o direito. Na verdade, o que Stutchka pretendeu foi substituir os velhos juristas burgueses por “juízes populares”, a fim de dar cumprimento a essas leis em conformidade com a consciência revolucionária. Segundo ele, “esse é o significado de nossa legalidade e de nosso recuo”.
Nesse sentido, o autor acabou por substituir a lei pela consciência — algo parecido com o “justo” sob o ponto de vista comunista. Seria um mau comunista aquele que aplicasse todos os lados positivos da legalidade, ainda que revolucionária, exclusivamente ao grande capitalista e não também ao “pequeno homem”. Para este último, a legalidade era ainda mais importante e necessária, “pois o primeiro possui mais meios para ‘forçar’ o seu ‘direito’, uma vez que tem mais ‘garantias’ no bolso do que o pequeno homem” (Stutchka, 2001, p. 106).
Na década de 1920, Stutchka advogaria o primeiro “conceito científico” de direito, tornado oficial em 1919: “O direito é um sistema (ou uma ordem) de relações sociais que corresponde ao interesse da classe dominante e que, por isso, é assegurado pelo seu poder organizado (o Estado)”[32]. Em outra oportunidade, diria: “Libertamos o direito de sua aparência misteriosa, esotérica, e o transformamos em um sistema das relações humanas quotidianas, o qual pode ser inteligível e acessível a todos, tal qual são essas próprias relações” (Stutchka, 2001, p. 83).
Caminhando em sentido divergente, Ivan Podvolotsky[33], discípulo de Nikolai Bukharin, entendia que o direito é um sistema de normas determinado pelas relações e interesses econômicos da classe dominante. Tais normas sancionariam as relações sociais existentes, tornando-as compulsórias para a sociedade, considerada em seu todo. Desse modo, as relações econômicas, asseguradas por normas legais, adquiririam o formato de relações legais. 
Nesse caso, o direito-norma seria uma espécie de consequência da realidade, mas sem com ela se confundir. Não seria, como pensam os juristas burgueses[34], desenvolvido por si mesmo, já que sua existência dependeria das condições sociais: “as relações de produção e sociais provocam as normas do direito”, segundo Podvolotsky, que também critica Stutchka com a seguinte pergunta: se as relações sociais e o direito são, porém, fenômenos idênticos, por que, então, utilizarmos duas designações? Ironicamente, ele complementa: a afirmação de que as relações de produção determinam as classes seria, então, indêntica à expressão o direito determina as classes.
Podvolotsky conclui que a equiparação estabelecida entre direito, relações de produção e relações sociais não é absolutamente marxista. Para o autor, é da superfície dos fenômenos nas relações sociais que surge a uniformização jurídica. Um ato de compra e venda é, por um lado, um ato econômico, mas, por outro, possui um lado jurídico, a saber, o seu reconhecimento pela classe que está no poder e dita o direito. As leis são normas coercitivas que tornam compulsório o sistema de relações. Os atos jurídicos são capazes de produzir transformações na economia, por exemplo, os da autoridade soviética, dispondo sobre a nacionalização da terra, a propriedade etc. Para Podvolotsky, o direito é uma superestrutura que cresceu a partir de certas relações de produção, isto é, a partir da base, e que, por sua vez, reage sobre a base, sancionando-a, assegurando-a, tornando-a obrigatória. Ele acredita que Stutchka confundiu superestrutura com base.
Teórico marxista de grande destaque nas academias, E.B. Pachukanis (1981–1937), vice-comissário do Povo para Justiça (Stutchka era o comissário), escreveu em 1924 A Teoria Geral do Direito e o Marxismo. Como os demais marxistas, entendia que o direito era uma invenção burguesa e que seria extinto juntamente com o Estado e as classes sociais. Contudo, ele teve a pretensão de apresentar uma “teoria geral do direito”. Pachukanis criticava Stutchka por este concentrar sua análise no conteúdo de classe, não aprofundando seu pensamento a respeito da própria forma jurídica (Pachukanis, 1989, pp. 17, 52).
A crítica dirigida aos outros marxistas era a de que eles, “quando falam em conceitos jurídicos, pensam, essencialmente, no conteúdo concreto do ordenamento jurídico característico de uma época dada”. Pachukanis aponta que a teoria marxista não deveria examinar apenas o conteúdo concreto dos ordenamentos jurídicos, mas também fornecer “uma explicação materialista do ordenamento jurídico como forma histórica determinada”. Sustentava que as teorias marxistas que o precederam, entre elas a do próprio Stutchka e de Podvolotsky, não ultrapassavam os procedimentos grosseiramente empíricos da ciência do direito. Aqui surge a questão crítica do direito enquanto conteúdo versus direito enquanto forma jurídica, o que, de certa forma, Podvolotsky também abordou, ainda que visualizando o jurídico na superfície das relações sociais. Pachukanis foi bem além: não procurou explicar apenas a origem do ordenamento jurídico, mas o próprio ordenamento jurídico (Pachukanis, 1989, pp. 18–20).
Esse debate no seio do marxismo não poderia deixar de refletir a ousada tese de Hans Kelsen, então em voga, sobre uma teoria pura do direito, cujo elemento central seriam as normas jurídicas. O próprio Pachukanis não nega o mérito de Kelsen, porém critica o seu modo de analisar a forma jurídica como sendo algo fora da realidade, portanto, sem poder tirar muito dela. Segundo Pachukanis, Kelsen se detém na norma sobre a relação entre sujeitos, e não o contrário. Para Kelsen, o credor cobra do devedor porque existe norma jurídica, e não o contrário, como pensa Pachukanis. Este diria que na realidade material a relação prevalece sobre a norma. Ou, “para afirmar a existência objetiva do direito, não é suficiente conhecer o seu conteúdo normativo, mas é necessário saber se este conteúdo normativo é realizado na vida pelas relações sociais” (Pachukanis, 1989, pp. 15–16, 37, 55–57).
Aqui entra a recorrente indagação sobre o que vem primeiro, se a lei ou os costumes. Ou, ainda, se a norma é mera consequência das regras criadas espontaneamete ou se elimina a espontaneidade das relações entre sujeitos. Pachukanis se coloca entre dois extremos: o dos marxistas, voltados somente para as questões concretas, e o de Kelsen e outros teóricos de origem kantiana, que se limitavam à forma jurídica. Pachukanis procura trilhar um caminho intermediário e, para sair desse limbo, tenta a difícil tarefa de estabelecer um ordenamento jurídico com base na teoria econômica de Marx.
 Para Pachukanis, a norma seria fruto da realidade (diferentemente de Kelsen) e das relações econômicas, não sendo mero acessório, já que possuiria mecanismos próprios. Essa linha em Pachukanis é tênue e limitada à economia capitalista, já que não tem “pernas próprias” (nem totalmente normas, nem totalmente fato). Digo que é uma linha tênue porque a todo o momento ela corre o risco de se identificar mais com a visão kelsiana, um tanto idealista para seu gosto, ou com o realismo mecanicista (pragmatismo).
Por outro lado, Pachukanis não aceitava que o direito burguês, ao ser extinto, fosse substituído por um direito proletário, pois o desaparecimento de categorias econômicas (valor, capital, lucro etc.), no período de transição para o socialismo evoluído, não siginificaria o aparecimento de novas categorias proletárias de valor, como capital etc. O autor admitirá, no entanto, um período de transição, um “Estado burguês sem burguesia”, o que já vinha se dando principalmente na política da NEP, à qual ele faz referência explícit (Pachukanis, 1989, pp. 25–26).
Percebe-se aqui o nível de conflito entre Pachukanis e os demais marxistas, que, aos poucos, foram adotando a proposta de “direito proletário”, sobretudo pelo fato de o Estado soviético valorizar, disfarçadamente, o lucro, a “propriedade”, a mais-valia. Talvez a assertiva mais correta seria a de que Pachukanis decretou o fim do direito junto com o fim do próprio Estado.
Não posso deixar de ressaltar que Pachukanis, a partir de 1930, foi forçado a fazer autocrítica. Abandonou a relação antes estabelecida entre o direito e as formas jurídica e mercantil e passou a defender a relação do direito com as relações de produção[35]. Resumindo, ele deixou de privilegiar a forma jurídica em favor do conteúdo do direito. Mas, como no caso de Galileu, tais revisões não se sobrepuseram ao que foi revisto, pelo menos para a ciência.
Nesse contexto histórico do marxismo, surgem duas vertentes: negar o direito, considerado meramente burguês, conforme os ideais clássicos de Marx; ou criar um direito comunista, a fim de elevar as normas jurídicas ao nível das relações econômicas, o que acabaria — da mesma forma — por anular a autonomia do direito, conforme ideais leninistas pós 1917.
Além dessa primeira divergência, sobre se o direito seria só burguês ou se poderia também ser proletário, havia uma segunda questão, esta mais filosófica: se o direito era uma norma (com alguma autonomia) ou mera consequência das relações de produção. Para o marxismo, grosso modo, o direito é mera consequência da economia, o que leva à dificuldade de se distinguir o próprio direito da economia. Afinal, se o direito existe, exige uma definição. O que o torna diferente?
Se partirmos de uma análise que visa ser mais científica ou mesmo dogmática, podemos dizer que o direito é uma reunião de normas (ou ordens) emanadas dos dominantes e que simplesmente se esgotaria com a extinção dos dominantes. Se partirmos de uma perspectiva pragmática, podemos até dizer que o direito é o justo, que varia conforme os interesses de classe (ou a consciência de classe). A primeira análise, mais pura e melhor, adequava-se à expectativa de que o processo revolucionário seria rápido. Já a segunda análise foi ganhando força com a comprovação de que a Revolução seria um processo bem mais lento e profundo do que se imaginava. As conotações sobre o justo passaram a ser mais exploradas, assim como o direito enquanto leis.
Futuras colocações da esquerda contra o legalismo estariam muito mais calcadas no pragmatismo do que pareceriam à primeira vista, ou seja, fruto de ausência de leis alternativas. Nem se compare o legalismo com o positivismo jurídico. Para este, o mais importante não era a “lei”, mas o seu cumprimento por meios coercitivos num cenário em que o Estado, por consequência, teria prevalência. Visto por esse ângulo, a Revolução Bolchevique foi extremamente positivista. O máximo que se procurou de fato implementar, com dificuldade, foi a mudança de conteúdo do direito (leis alternativas), para que se adequasse a interesses de classe ou, mais precisamente, a uma consciência comunista que aplicasse o justo.
Lenin defendia a repressão como necessária no período de transição da maioria explorada para uma minoria de exploradores[36]. Evidentemente, ele não estava com isso advogando um direito positivista no sentido jurídico, apenas indicava que era função do Estado fazer cumprir as novas regras de justiça. Entretanto, a Revolução acabou por incorporar o direito positivista dos países capitalistas, mas com leis frouxas e o foco no justo (consciência comunista), incentivando a prática casuística, imediatista, sob o controle da burocracia de Estado, sem muita diferença em relação a qualquer outro regime autoritário.
Trabalhos marxistas pós-Segunda Guerra e de grande influência até os anos 1980 limitaram-se a identificar a lei como simples instrumento de repressão burguesa inserida na superestrutura. Já a via jurídica, desprezada enquanto meio de transformação social, era entendida até como contrária à Revolução. Nesse campo, destaco dois autores influentes até a citada década que podem ser considerados marxistas estruturalistas.
O primeiro, Louis Althusser, identificava o Aparelho do Estado (AE) com o governo, a administração, o exército, a política, os tribunais, as prisões etc., que funcionavam por meio da violência. Ele então propunha desenvolver uma teoria do Estado marxista sob o enfoque do que chamou de Aparelho Ideológico do Estado (AIE), que subsistia por meio de ideologia. Nessa área estariam incluídos o político, o sindical, as instituições religiosas, as escolas públicas e privadas, a família, a informação, a cultura. O “direito” pertenceria, simultaneamente, ao AE e ao AIE. De acordo com o autor, a distinção entre público e privado é uma distinção intrínseca do direito burguês[37].
Nicos Poulantzas, seguidor de Althusser, considerava que a lei detinha papel fundamental na repressão, materializando a ideologia dominante. Conforme o autor, a lei-regra, por meio de sua discursividade e textura, ocultava realidades político-econômicas, comportava lacunas. E estas serviriam para permitir que o Estado fosse além da lei, não sendo mero descuido ou cegueira, mas brechas. Sem falar nas violações puras e simples da própria lei. Assim, a ilegalidade seria parte da lei[38].
Outro autor, também descendente da corrente althusseriana, Bernard Edelman, teceu uma interessante reflexão no âmbito do Direito do Trabalho. Ressaltou que as tradicionais “conquistas” da classe operária (jornada reduzida, férias etc.) significaram, na verdade, “derrotas políticas”. Ao se legalizar a classe operária, esta seria capturada, neutralizada, amordaçada[39]. Haveria, assim, um processo de desvirtuamento dessa classe.
Edelman (2016, p.19) questiona a compreensão do movimento operário por meio de suas “conquistas”, na verdade, por meio de uma “história jurídica”, o que reproduz o ponto de vista da burguesia. Esse processo de “conquistas” estaria ainda dentro do AIE. Diria ele que se por um lado podemos nos orgulhar do “poder” jurídico que o operariado conquistou, por outro podemos perguntar de que natureza é esse poder, visto ser jurídico. Dito de outro modo: se a lei (burguesa) dá “poder” à classe operária, de que poder exatamente se trata?
Tais conquistas, portanto, são, efetivamente, “direito burguês”. O autor propõe se livrar de uma vez por todas da ilusão tenaz de um direito operário. Para ele não existe direito do trabalho, mas direito do capital. Ele critica a ideia de um “novo direito” autônomo como denominação de direito coletivo, de direito de massa. Desse esforço equivocado teria nascido o “socialismo dos juristas”. Assim, o direito operário não passaria de um direito burguês para o operário, e o direito de greve é um direito burguês. Mesmo os sindicatos não poderiam representar a classe operária, pois a existência desta seria “extralegal” (EDELMAN, 2016, pp. 19, 43, 112).
Até certo ponto, Edelman parece “descobrir” o óbvio: direito operário (revolucionário) não é o mesmo que direito do trabalho (legislação do trabalho). O autor considera que existem duas vias de atuação para o movimento operário. Uma, que Edelman (2016, p. 21) chama de “revolução no direito” e que estaria nos limites da lei, na existência jurídico-política, e que segue a linha do direito do trabalho ressaltando suas conquistas históricas. A outra via seria a revolucionária pura, mas Edelman não aprofunda a análise dessa via, já que seu livro é mais crítico do que propositivo.
Michel Miaille é estudado nas universidades brasileiras principalmente como autor crítico. Em seu livro Introdução Crítica ao Direito, escrito em 1979, ele expõe o que chama de discurso: um corpo de proposições com lógica e possibilidade de se reproduzir segundo leis internas à própria lógica. Em seguida, menciona a existência de um “discurso científico”, mas, de certa forma, questiona a própria verdade científica, que, segundo ele, pode ser alterada em função da História.
Ainda do ponto de vista de Miaille, seria possível construir também uma verdadeira ciência do direito, mas, para isso, seria preciso superar obstáculos epistemológicos. Ele acaba por defender uma ciência jurídica cujo objeto de estudo são as regras de direito, entendidas como tendo domínio próprio em relação a outros fenômenos. Miaille (2005, p. 59) não procura focar as normas (no sentido positivista) e sim as relações ou métodos jurídicos, sem negar a necessidade de que haja interdisciplinaridade. O estudo de Miaille possibilita reflexões, inclusive para a distinção entre “ciência” e “discurso”.
 Minha opinião é a de que o discurso é uma abordagem para fora, para uma população-alvo, enquanto a ciência está voltada para a pesquisa do objeto. Os métodos e os objetivos de ambos são distintos. A ciência existe enquanto método para se chegar a uma conclusão (que seria “a verdade”, ou “a verdade possível” em determinado contexto histórico). Já o discurso tem a finalidade de convencer, não necessariamente por meio de provas, mas pela lógica interna, que pode facilmente transmitir uma ideologia.
Um historiador marxista que ganhou notoriedade mais recentemente foi E.P. Thompson. Ele afirma, em Senhores e Caçadores, de 1979, que não se pode desprezar a luta pela lei que pode ser assimilada pelas classes dominantes. Nem tudo, porém, que está vinculado a essa lei está submetido aos tribunais e aos juízes. A lei segundo Thompson (1997, pp. 350–351) pode ser vista como ideologia ou regras e sanções, mas também “pode ser vista simplesmente em termos de sua lógica, regras e procedimentos próprios — isto é, simplesmente enquanto lei”. Assim, conclui que não é possível conceber nenhuma sociedade complexa sem lei.
No caso estudado por ele (a Lei Negra e sua evolução), a distinção entre a lei, de um lado, concebida como elemento da “superestrutura”, e, de outro, como sendo as realidades das forças produtivas e das relações de produção, mostrava-se cada vez mais insustentável. Assim, ele apontava que, naquele contexto rural do século XVIII, a “lei” estava imbricada na própria base das relações de produção, que teriam sido inoperantes sem ela. A lei, segundo Thompson, pode ser vista instrumentalmente como mediação e reforço das relações de classe existentes e, ideologicamente, como sua legitimadora. O autor afirma ainda que as relações de classe eram expressas, não de forma aleatória, mas “através das formas legais” (Thompson, 1997, pp. 351–353).
Thompson critica os “filósofos estruturalistas” e o “reducionismo estrutural”, indicando que a lei não é simplesmente um artefato da superestrutura, da repressão, mas também um elemento que exige legitimidade. Isso fica claro quando ele diz que se a lei é manifestamente parcial ou injusta não vai mascarar nada, admitir nada, contribuir em nada para a hegemonia de uma classe. Para ele, “a lei, em suas formas e tradições, acarretava princípios de igualdade e universalidade. Assim chegamos não a uma conclusão simples (lei = poder de classe), mas a uma conclusão complexa e contraditória” (Thompson, 1997, pp. 354–356).
Thompson procura distinguir “poder arbitrário” de “domínio da lei”, questão que seria negligenciada por certos marxistas modernos. Para ele, é um erro desistir da luta contra as más leis, pois isso significaria jogar fora toda uma herança de luta pela lei. O autor acreditava que as formas e a retórica da lei adquirem uma identidade particular que, às vezes, inibem o poder e oferecem alguma proteção aos destituídos de poder. Por fim, ele afirma que “a lei não foi apenas imposta de cima sobre os homens; tem sido um meio onde os outros conflitos sociais têm se travado” (Thompson, 1997, pp. 356–358).
Thompson é um estudioso mais moderno que relaciona lei e legitimidade sob a influência teórica de autores também mais modernos (Max Weber, Jürgen Habermas, Pierre Bourdieu) que não veem a lei apenas como instrumento de opressão, já que ela também é aceita, voluntariamente, pelo oprimido (poder simbólico).



























3. AS FASES DO “DIREITO DE ESQUERDA” E A VIA JURÍDICA NO BRASIL

Pelo já exposto, podemos traçar um panorama de algumas fases históricas sobre a visão da esquerda em torno do direito. A primeira, a marxiana, formou-se a partir dos textos originais de Marx e Engels. A segunda, pragmática, saiu da experiência bolchevique, quando a exigência prática começou a esboçar um discurso sobre o próprio conceito do direito, com questionamentos existencialistas. A terceira fase, estruturalista, ocorrida após a Segunda Guerra, pretendeu retomar o marxismo de forma pura, mas enquadrado em esquemas. Ainda de forma um tanto isolada, as ideias de E.P. Thompson parecem despontar o início de uma nova fase menos sectária e mais realista.
A disseminação no Brasil de um discurso de esquerda mais teorizado dentro das universidades de direito só teve início no final do regime militar, e ainda sob a influência do estruturalismo marxista. A essa altura, duas vias jurídicas de discurso se formaram na esquerda brasileira: uma buscando caminhos e procedimentos alternativos, outra mais constitucionalista e reformista, calcada na promoção de mudanças no texto legal. Vejamos por partes esse processo.
O final do século XIX e o início do XX foram períodos ricos para a teoria do direito. Só para citar alguns nomes que se aprofundaram no estudo do tema: Rudolf Ihering, com a luta pelo direito; Hans Kelsen, com a ciência pura do direito, o que influenciaria todos os ramos do direito; Eugen Ehrlich, com seu estudo sobre o direito vivo e extraestatal, que expandiria o horizonte das normas; Max Weber, com o enfoque sobre a racionalidade e a legitimidade do direito; Émile Dürkeim, com suas análises sobre o direito coletivo e corporativo; e Freud, que exerceu enorme ascendência sobre o desenvolvimento das ciências, das artes e do direito. Seria impossível a esquerda não sofrer essas influências.
Com a Revolução Bolchevique, os teóricos encarregados de administrar a justiça no país se depararam com muitas questões teóricas e filosóficas que não poderiam ser respondidas sem o aproveitamento da doutrina “burguesa”. Pachukanis foi o revolucionário que mais enfrentou o tema. Ele se perguntava se a “ciência do direito” seria capaz de desenvolver uma teoria geral do direito sem se dissolver na psicologia ou na sociologia. Ele, decerto, já havia percebido, embora não explicitasse isso, o risco de essa “ciência do direito” extrapolar para outras. Ao criticar os juristas kantianos, incluindo Kelsen, Pachukanis afirma que a teoria deles “nada tem a ver com a ciência”, já que não pretende analisar o direito, a forma jurídica enquanto forma histórica, pois não visa estudar a realidade. E prossegue criticando as teorias jurídicas sociológicas e psicológicas por deixarem a forma jurídica fora de suas reflexões (Pachukanis, 1989, pp. 14, 16).
A intenção de Pachukanis seria, resumidamente, desafiar uma ciência do direito que relacionasse a forma jurídica com a realidade. Não pela trilha da total abstração, seguida, de acordo com ele, pelos kantianos, nem fugindo da forma jurídica, como os juristas sociológicos e psicológicos. E sim, como já referido, perseguindo a trilha da teoria de Marx sobre economia, especialmente a parte sobre a teoria do valor relacionada ao mercado.
Foi a época do prelúdio da fase existencialista do direito marxista, que seria retomada após a Segunda Guerra e, no Brasil, no final da ditadura. O que é direito-lei? Forma ou conteúdo? Existe direito de classe? Essas são questões sobre a existência do direito que não deixam de pertencer ao universo do próprio marxismo. Já na fase stalinista, prevaleceu o direito pragmático, concretista ou economicista, medido em função das condições de vida da população. A URSS seguiu a tendência da época adotada nos Estados autoritários (Itália, Alemanha, Portugal, Brasil etc.), nos quais se privilegiava o medo em detrimento do espírito crítico. Durante a Segunda Guerra, praticamente não existiram nem o estudo do direito nem o próprio direito (estado de direito) no sentido aqui tratado. Análises mais marcantes desenvolvidas nesse período envolviam a humanidade sob o enfoque filosófico (Jean-Paul Sartre, Hannah Arendt e outros).
Os EUA saíram do conflito com a economia produtivista aquecida e um Estado forte e expansionista, embora sob um regime de mercado bastante liberal; e a URSS, com um regime também produtivista, mas totalmente planificador e sob um governo autoritário. O surgimento da Guerra Fria foi a consequência imediata. A Europa, desmantelada com a guerra, conseguiu se recuperar implantando um sistema social-democrata e um Estado do bem-estar social reformista, buscando manter sua autoridade no mundo, principalmente sobre os denominados países de “terceiro mundo” do “lado ocidental”. As questões filosóficas sobre o direito foram cindidas entre lado ocidental e lado oriental; e o marxismo foi mais desenvolvido teoricamente dentro do capitalismo do que nos regimes socialistas, provavelmente pela falta de liberdade de expressão nesses regimes.
Nas universidades brasileiras, do pós-guerra até o fim da ditadura militar, o direito não era tratado como objeto de estudo. Preponderavam a exegese e a dogmática jurídica. O Código era o grande farol do direito e as principais disciplinas — como direito civil, direito penal, direito comercial, direito processual civil, direito processual penal — iam seguindo a evolução dos artigos dos códigos, alinhadas com números romanos (Direito Civil I, II, III etc.).
O direito era tudo, inclusive a própria ciência, sem precisar recorrer a outros campos de estudo. Uma novidade foi o Direito do Trabalho[40] como um novo ramo, que, de forma tímida, foi questionando princípios rígidos do direito civil e ganhando a atual formatação. Antes, o Direito do Trabalho era confundido com as legislações do trabalho e da previdência, apesar dos esforços um tanto isolados dos primeiros teóricos da década de 1930, entre eles Evaristo de Moraes, Joaquim Pimenta e Oliveira Vianna, embora a preocupação de todos eles fosse mais institucional e voltada para grandes demandas sociais. O Direito do Trabalho mais detalhista, contratualista e regulacionista tomaria forma na geração seguinte, a do pós-guerra, chegando ao ambiente universitário e acadêmico por meio de professores, juízes, procuradores e advogados.
A grande preocupação dessa última geração era firmar a existência de um direito autônomo, com nome próprio e até endereço próprio, a Justiça do Trabalho. Quase todos os livros de Direito do Trabalho dessa época visavam demonstrar esse diferencial, ou seja, a relação desse direito com a história das lutas operárias, alguns até vinculando esse ramo do direito aos movimentos comunistas, ao lado do movimento cristão. É interessante observar essa analogia, até então nunca reivindicada pelos comunistas. O Direito do Trabalho se consolidou, mas afastando-se do direito previdenciário, o que traria a desvantagem de isolar-se exclusivamente na relação contratualista. O direito social era mais amplo. Também foram afastados os enfoques de legislação social, direito corporativo, direito operário, direito industrial.
As regras contratuais do “toma lá, da cá” foram evoluindo sob o discurso oficial, contrário a excessos do poder do empregador e favoráveis a um direito protetor do mais fraco, mas sempre tendo em vista a manutenção da paz entre as classes. Com a consolidação da disciplina surgiram os primeiros livros mais técnicos de curso do Direito do Trabalho no Brasil (Cesarino Júnior, Nélio Reis, Evaristo de Moraes Filho, Orlando Gomes, José Martins Catharino, Luiz Mesquita, Buys de Barros, Adaucto Fernandes e outros), que não se limitavam a expor a legislação, elaborando também a doutrina. Foi uma época em que o Direito do Trabalho, tal como hoje o conhecemos, foi surgindo nos cursos universitários, com rica literatura técnica sobre contrato de trabalho; nos sindicatos, com seus departamentos jurídicos; e na Justiça do Trabalho, com juízes que se esforçavam para produzir teoria, como Geraldo Montedônio Bezerra de Menezes, Délio Maranhão, Victor Russomano, Coquejo Costa, entre outros. Também os procuradores do Trabalho trabalharam nesse sentido, se bem que estes tiveram maior participação teórica na própria elaboração da CLT na década de 1940, influenciados pela teoria institucionalista. Os novos juízes buscaram mais as fontes civilistas para fundamentar suas teses.
Foi no final do regime militar que se desenvolveram nas universidades análises com foco em um “direito de esquerda”. Mas não precisamente na disciplina do Direito do Trabalho, que, nessa época, nem era tão nova. O Direito do Trabalho acabava sendo visto como um “direito menor”, praticado por advogados mais preocupados em fazer acordos numa justiça em que ainda havia leigos julgando, sem nem sequer ser obrigatória a presença de um advogado.
Não obstante, esse período que vai do pós-guerra até o final da ditadura militar foi rico em revoluções no âmbito internacional (Cuba, Vietnam etc.) e em movimentos, como o estudantil na Europa (e no Brasil), a Revolução Cultural na China, o de independência das colônias portuguesas, a própria Revolução dos Cravos de Portugal, em 1974, a revolução na Nicarágua, a queda do Xá do Irã, além de outros, alguns meramente incentivados pela luta por territórios entre os dois polos da Guerra Fria. Chegou mesmo a haver guerra entre países socialistas, no caso, China contra Vietnã. Tal cenário dava a impressão de que estava havendo um efetivo confronto internacional entre o capitalismo e o socialismo, pelo menos até a queda do Muro de Berlin, em 1989.
Dessa forma, era fácil elevar o tom dos discursos sob um pretenso “respaldo de massas”, por vezes ilusório. Essa foi a época do marxismo estruturalista, dogmático, que procurou retomar os primeiros ensinamentos de Marx e Engels de forma mecânica e sem adaptação ao novo contexto científico mundial. Houve praticamente um retrocesso no estudo de Marx sobre o direito, pois agora poderia o direito ser da burguesia ou até do proletariado, considerando a influência soviética.
Observe-se, no entanto, que foi uma época em que alguns ex-marxistas ou pós-marxistas se destacaram com grande potencial teórico, muitos oriundos da academia e fugindo do dogmatismo marxista. Acabaram por provocar o surgimento de questões que, de alguma forma, relacionavam trabalho e ciência. As universidades europeias davam mais espaço para novas ideias do que os partidos revolucionários, nos quais os conceitos passavam pelo crivo do centralismo democrático e havia grande risco de o “novo” ser considerado “revisionismo”. Assim, discussões sobre a relação entre ciência e ideologia, o surgimento de novas classes, além das duas tradicionais, e a importância da cultura na revolução foram desenvolvidas por autores como Habermas, Wright Mills, Bourdieu e André Gorz.
Também foram “descobertos” os textos de Antonio Gramsci, que mostrou que as classes possuíam grupos internos que disputavam hegemonia entre si. Nas décadas de 1960 a 80 despontaria ainda uma militância sem partido, mais livre e individualizada, formulando novas questões relacionadas ao marxismo e ao direito.
A discussão sobre o significado social e científico do direito seguiu um caminho bastante acadêmico no Brasil. Até o final da ditadura militar, o movimento sindical reivindicativo e os partidos revolucionários não tinham a pretensão de questionar cientificamente o direito. Havia meras discussões fáticas no parlamento. O Judiciário tinha uma produção extremamente técnica, sobretudo a respeito dos aspectos processuais. Na época, a classe de juristas teve grande influência na interpretação da legislação e na criação de doutrinas que seriam aprofundadas nas universidades. A OAB e o IAB (Instituto dos Advogados Brasileiros) também procuraram discutir o direito, seja agindo mais politicamente (OAB), seja mais tecnicamente (IAB). Mas não existe registro de que tais órgãos tenham apresentado nesse período algum estudo mais acurado sobre o direito a ponto de influenciar a esquerda.
Sendo assim, os marxistas preocupados em desenvolver o estudo do direito enfrentaram diversas desvantagens em relação a outros teóricos do tema, fosse por falta de bagagem teórica histórica, fosse por correrem o risco de serem tachados de “revisionistas”. Não à toa os movimentos sociais aproveitavam os clássicos “burgueses” que, em sua essência, contrariavam os preceitos basilares do marxismo. Cito como exemplo A Luta pelo Direito, de Rudolf von Ihering, escrito em 1891, que passou a ser usado como um manual para movimentos sociais pelo simples fato de relacionar o direito à ação prática.
O vigor de Ihering retomava o espírito de efetiva luta existente na obra de Marx. Entretanto, sua doutrina não poderia, de forma alguma, harmonizar-se com o marxismo, já que Ihering (1983, pp. 52–54) defendia a permanência do lucro e da propriedade privada, negando apenas a forma imoral de adquiri-los, além de atacar diretamente o comunismo. Com linguagem de manifesto, ele inicia seu livro dizendo que “o fim do direito é a paz” — tudo o que o marxismo revolucionário rejeitava. Todavia, a frase se completa com “o meio para atingi-lo é a luta”, o que agradava à esquerda.
Ihering entendia que a justiça e o direito não floresciam pelo simples fato de o juiz estar sempre pronto para julgar e a polícia sempre pronta para sair à caça de criminosos: “Cada qual tem que fornecer sua contribuição”. Em poucas palavras, “todo homem é um combatente pelo direito, no interesse de toda a sociedade” (Ihering, 1983, pp. 70–71). Como se percebe, a justiça e o direito eram vistos como uma responsabilidade de todos, sem distinção de classe. Todavia, Ihering via o direito como ciência, sem se prender a legalismos, atraindo, com isso, a atenção da esquerda. Por outro lado, a luta pelo direito poderia facilmente ser confundida com a luta pelo poder, e dessa forma ser utilizada politicamente.
Aqui o direito não era algo que só viria de cima (da superestrutura), mas que se construiria também de baixo para cima. Essa possibilidade de o fato se impor sobre a norma, ou de ser a própria norma, foi efetivamente desenvolvida por Eugen Ehrlich, influenciando o pensamento da esquerda, que optara pela via alternativa, da qual trataremos adiante.
É importante destacar que na época da Assembleia Constituinte (1988) a esquerda, sem abandonar o discurso radical, não se furtou a negociar dentro do parlamento, confrontando o “centrão”. E, com isso, muitos direitos de cidadania, substancialmente sociais e sindicais, foram conquistados, assim como a função social da propriedade privada. A nova Constituição chegou a representar uma espécie de pacto social nos moldes iluministas que já dura mais de 30 anos, tal a ausência de combate ao conjunto de seus preceitos, desconsiderando, claro, críticas pontuais aqui e acolá. Esse pacto fez com que todos jogassem a mesma regra, valorizando as instituições e a cidadania. É interessante observar que nesse processo aquela esquerda comunista-leninista não se deu por derrotada. Pelo contrário, em grande parte comemorou suas conquistas pontuais, o mesmo ocorrendo com o “centrão”.
A Assembleia Constituinte representou um momento ímpar na política brasileira que não se repetiu. A partir da nova Constituição, a esquerda brasileira assumiu efetivamente a via jurídica, porém sem autocrítica. No plano institucional não havia motivo para o PT e o PDT fazerem autocrítica, já que tinham acabado de ser fundados, diferentemente dos marxistas que mudaram sua conduta institucional.
No lugar da revolução, no sentido de insurreição operária, surgiram “as revoluções” localizadas, que embora não derrubassem o capitalismo o tornariam mais domesticado, a partir de reformas consideradas “avanços” e “conquistas”. Esse avanço progressista a partir de “diversas revoluções” ajudou a diminuir os postulados em nome do “povo” e das “massas”, prevalentes até a década de 1980, que davam noção de totalidade ou de maioria, não valorizando muito as novas demandas de minorias e de causas específicas. Ficou demasiadamente reduzida a relação reivindicativa entre “povo” X Estado, aumentando a de “coletividades” X Estado.
Não houve o processo imaginado por Marx e Engels no qual as classes se distanciariam, ficando os burgueses de um lado e os operários de outro, tendo os pequeno-burgueses de optar por um dos lados (proletarização). A classe média é que cresceu, provocando discussões sobre certo “aburguesamento” na esquerda europeia[41]. O Estado já não era mínimo, atendendo não só aos burgueses, mas a uma vasta gama de necessitados.
Esse processo de flexibilização da esquerda coincidiu com sua opção política de, efetivamente, renunciar ao leninismo e construir partidos de massa, eleitorais, com práticas pacíficas e — por que não dizer? — aburguesadas, mas sem abandonar o discurso que fazia parecer que a revolução estava perto de estourar.
A expansão horizontal dos ramos do direito, ou melhor, a “exploração do direito” por novas demandas sociais, assim como a exposição do direito para ser estudado por ciências diversas, não suplantou as antigas indagações sobre a própria existência do direito, mas estas, sem dúvida, foram sombreadas por outras questões mais imediatas. Em outras palavras, o “existencialismo do direito” — do que é o direito — não foi resolvido e provavelmente nunca será. Entretanto, essa definição talvez não seja mais tão importante para além dos muros acadêmicos.
O questionamento sobre se o direito é ou não uma ciência foi, aos poucos, dando margem a análises sobre o próprio direito enquanto objeto de estudo sob diversos enfoques, e não apenas sob o do direito em seu sentido puro ou abstrato. Mais tarde surgiram estudos sociológicos de casos históricos envolvendo o direito, assim como estudos mais detalhados sobre as instituições judiciárias, os juízes, os advogados, as sentenças, os ritos processuais. São estudos principalmente sociólogos, como os de Boaventura de Sousa Santos, Luiz Werneck Vianna, Sergio Adorno, Maria Tereza Sadek, Eliane Junqueira, José Ribas Vieira, Maria Guadalupe Fonseca, Elina Pessanha, Regina Morel, Angela de Castro Gomes, José Eduardo Faria, entre outros.
O direito também foi deixando de ser mera consequência do Estado, para eventualmente ser contrário a ele. A lei-texto foi deixando de ser estudada apenas em função de sua forma e da validade kelsiana para ser estudada também por meio da legitimidade (Weber, Habermas, Bourdieu).
Nas faculdades o questionamento sobre o direito começou a ser estudado na sociologia do direito pelos sociólogos, com a ajuda de filósofos, antropólogos e cientistas políticos. Mas foi a disciplina sociologia jurídica que mais ofereceu espaço para tratar do marxismo nas faculdades de direito. Não à toa, na década de 1970, a sociologia passou a integrar a grade dos cursos de direito no Brasil, firmando-se na década de 1980. Decerto em decorrência da ausência de professores sociólogos nesses cursos, juristas ministravam os cursos de sociologia jurídica. Segundo Eliane Botelho Junqueira (1993, pp. 49–52), tal curso objetivava, a partir de diferentes perspectivas e diferentes programas, desenvolver uma “consciência crítica” no estudante. Não conseguia, no entanto, consolidar-se como disciplina reconhecida nem pelos juristas nem pelos sociólogos, que percebiam que a disciplina não operava a partir de critérios de validade típicos das ciências sociais.
Segundo a autora, a sociologia jurídica foi constituída por professores “de jeans”, em oposição aos de “terno e gravata”. Mais preocupados em criticar o discurso nativo e em transformar práticas vigentes no campo do que compreender a sua estrutura e funcionamento, tais discursos acabaram se transformando em contradiscursos. Assim, ainda conforme Junqueira, o termo sociologia jurídica parece mais apropriado para designar tão somente a disciplina que objetiva introduzir uma visão sociológica na análise do direito, despertando no aluno uma consciência crítica em relação à ordem jurídica. Ou seja, uma disciplina cujo objetivo era apenas “abrir a cabeça” dos estudantes.
Houve mesmo um esforço para acomodar a sociologia jurídica dentro da disciplina da sociologia, porém de forma estrita. De acordo com Souto&Souto (2003, p. 43), a sociologia jurídica pode ser vista como uma das ciências jurídicas básicas, ao lado da filosofia do direito e da chamada dogmática jurídica. Porém, os dois autores entendiam a palavra “ciência” em sentido estrito, propondo então que a sociologia jurídica fosse uma disciplina especial da sociologia. O problema estava em saber se a “ciência jurídica”, ou “sociologia jurídica”, ou outra qualquer disciplina “jurídica”, seria uma ciência. Ou se sua finalidade seria meramente conscientizar o estudante para que ele não visse o direito de forma legalista, e sim pelo ângulo da justiça social. Um livro que se encaixa bem nessa discussão é o de Michel Miaille, Introdução Crítica ao Direito, já comentado por nós, que não propõe um direito alternativo, mas apresenta uma visão alternativa do direito do ponto de vista marxista.
O direito alternativo, por sua vez, foi bem divulgado nas universidades e em encontros jurídicos com viés marxista quando seus teóricos identificavam a lei e o direito ao Estado, recebendo influência estruturalista, mas, diferentemente desta, aproveitavam a própria legislação, propondo um manejo sobre ela que pudesse contrariar a sua parte ruim. Ou seja, não propunha exatamente um direito “alternativo” ou paralelo ao do Estado, conforme ocorria, por exemplo, com o direito vivo de Eugen Ehrlich[42]. Nem seria fácil unir o direito vivo com o marxismo, pois o direito vivo justamente define suas fontes na infraestrutura da sociedade de forma oposta ao marxismo. Em suma, o direito alternativo buscava uma espécie de aplicação justa da lei e, se fosse o caso, a sobreposição do justo sobre a própria lei, porém nos marcos capitalistas. A influência do direito vivo ocorreu em torno da designação “direito achado nas ruas”, mas, na verdade, era o justo que estava em questão.
Em suma, até pelo contexto histórico do final da ditadura, o movimento do direito alternativo focava mais a postura pessoal dos juízes frente às injustiças que não eram atendidas pela legislação. Apontava também as falhas e as contradições da lei, com técnicas interpretativas que poderiam ser utilizadas para amenizar o rigor do legalismo e até efetivar uma justiça concreta. Roberto Lyra Filho, autor marxista não ortodoxo, foi um dos principais fundadores dessa teoria[43]. Ele tomou para si a tarefa de colocar em ordem as questões existenciais que tanto afligiam a esquerda.
Segundo Lyra Filho (1995, p. 8), a lei sempre emana do Estado, ligada à classe dominante. Contudo, ela abrangeria também, sempre, o direito e o antidireito, isto é, o Direito propriamente dito, reto e correto, e a negação do Direito, entortado pelos interesses classísticos e caprichos continuístas do poder estabelecido”. Lyra Filho realizou um exame crítico da lei, admitindo as “normas não estatais” de classe e de grupos espoliados e oprimidos formados na sociedade civil, não ligados ao Estado e que adotam ações vanguardeiras. Seria o caso de determinados sindicatos, partidos, setores de igrejas, associações profissionais e culturais, além de outros veículos de engajamento progressista.
O direito alternativo foi o que mais influenciou a esquerda no sentido de ser aceito como um ramo distinto, uma vez que a via reformista se misturava mais facilmente a outros segmentos sociais, conforme se verificou na Assembleia Constituinte. O direito alternativo era também mais viável de ser adotado no Direito Penal, indo contra o legalismo e as injustiças. Alguns juízes adeptos dessa teoria chegaram mesmo a aplicar decisão contra a lei, por exemplo, mandando soltar presos condenados por furtos insignificantes. Nesses casos, o hipotético “prejudicado” seria o Estado. Entretanto, havia dificuldade de se aplicar o direito alternativo em conflitos entre indivíduos, inclusive no Direito do Trabalho[44].
A questão do “justo acima da lei” foi uma temática recorrente entre os juristas que haviam sofrido com o autoritarismo da ditadura militar, e sua argumentação cresceu bastante. Essa forma de enfrentar as injustiças sociais dependia muito mais de uma postura dos juízes na hora de julgar, ou seja, de serem mais éticos que legalistas.
A temática do justo sobre o ditame da lei foi algo bastante aceito e adotado por juristas de destaque na esquerda. Dalmo de Abreu Dallari, por exemplo, afirmava que há muitas situações em que a correção das deficiências da lei depende exclusivamente de mudança de comportamento. Segundo ele, um juiz não pode ser escravo de ninguém nem de nada, nem mesmo da lei devendo possuir consciência contra as injustiças, muitas vezes provocadas por suas decisões legalistas (Dallari, 1996).
Outro autor com posições semelhantes é José Renato Nalini, que dizia não haver mais espaço, no Brasil, para juiz omisso, burocrata, compilador de jurisprudência ou distanciado do consenso jurídico. Ele defendia o juiz rebelde, diga-se, ético, e ainda afirmava: “O desafio não é apenas ético, mas o de atender, com eficiência, aos reclamos dos usuários”[45] (Nalini, 1992, pp. 18, 151, 169).
Essa exigência de determinada postura por parte do juiz ganharia proporções ampliadas anos mais tarde, com o advento do “ativismo judicial”, principalmente quando tal exigência deixou de ser aplicada em casos individuais por juízes singulares para demandas coletivas. O próprio STF, posteriormente, veio a gerar mecanismos de interpretação extensiva da Constituição Federal, possibilitando modulações, isto é, uma espécie de regulamentação de transição temporal de suas decisões. O ativismo judicial se fortificou com a judicialização da economia e da polític, e também com os estudos de Ronald Dworkin e Robert Alexy, que valorizam a adoção de princípios para reduzir o rigor da lei. O princípio da proporcionalidade foi proposto como forma de graduar o direito no caso concreto, e aqui o justo, de alguma forma, sobressai por meio de técnicas de julgamento.
No Brasil, quase todos os princípios já constam da lei ou da Constituição, restando apenas interpretá-la de forma mais extensa a fim de atingir múltiplos casos específicos, dando maior liberdade de criação do juiz. No entanto, quando esse princípio não provém do texto da lei/Constituição, há grande dificuldade de o “princípio puro”[46] ser aplicado.
Com o processo de redemocratização, que permitiu o retorno ao estado de direito e a consolidação da instituição do Judiciário, a via judicial foi ampliada, facilitando a prática do ativismo judicial. Porém, paradoxalmente, o ativismo também suscita o enfraquecimento de uma nova legislação e de uma legislação antiga, a qual, mesmo tendo sido produzida durante o regime autoritário, não foi revogada, estando, portanto, legitimada. Na democracia, a exigência do cumprimento da lei não pode ser confundida com o legalismo, sob o risco de se reduzirem direitos, debilitando a própria democracia.
Após a Constituição de 1988, a esquerda já optava pela via jurídica, e o cenário político passou a ser hostil a qualquer revolução no sentido clássico, aquele em que as massas tomam o poder do dia para a noite por meio de uma insurreição. O cenário internacional após a queda do Muro de Berlim deixava evidente que o mundo era outro. Assim, alguns princípios marxistas não teriam mais razão de ser, enquanto outros sobreviveriam.
A abolição da propriedade privada, por exemplo, tema tão discutido entre Marx e Proudhon, não teria mais sentido, até porque a propriedade privada já não era a mesma do século XIX. A Constituição de 1988 colocou-a dentro da função social. A esquerda passou a defender a aquisição de casa própria por meio de incentivos governamentais ou por usucapião no campo e nas favelas. E hoje a esquerda defende abertamente a distribuição de renda dentro dos marcos do capitalismo.
Também a abolição do assalariamento se tornou utópica, tendo a esquerda passado a adotar o discurso do pleno emprego. Já a fase superior da sociedade comunista — sintetizada no princípio “de cada qual, segundo sua capacidade, a cada qual, segundo suas necessidades” , inexistente no Estado mínimo, transformou-se em uma diretriz em países europeus por meio do sistema previdenciário, adotado também no Brasil. Embora esse princípio não seja aplicado a toda a sociedade, como Marx queria, é hoje empregado isoladamente no âmbito da saúde, garantida a todos pela Constituição de 1988.
Quanto ao tema da abolição do Estado, este perdeu sua prevalência, pois atualmente não existe mais uma distinção rígida entre público e privado, tal qual na época do Estado mínimo. O Estado administra por meio de concessões e contratos suscetíveis de serem rompidos. O direito administrativo evoluiu muito. Também a participação de representantes de entidades, como as sindicais, em colegiados estatais (neocorporativismo) faz com que muitas das responsabilidades com o uso da verba pública sejam compartilhadas com tais entidades, várias com perfil de esquerda.
A ideia de que haveria um estágio de transição, ou de socialismo, antes de a classe trabalhadora assumir o poder, ainda é defendida pela esquerda, inclusive pela via eleitoral, o que se enquadra bem no perfil de partido político de massa e no ambiente de liberdade democrática. A concepção da luta de classes persiste, ainda que hoje esteja diluída devido à fragmentação dos diversos segmentos de trabalhadores e ao crescimento de demandas que não representam exatamente a classe operária. É o caso das demandas de direitos em função de gênero ou raça e para a proteção do meio ambiente. Tais reivindicações podem encontrar alguma relação indireta com a luta de classes, mas não diretamente nem de modo uniforme. Também expressam temas facilmente defendidos por qualquer discurso humanista. A esquerda, nos últimos anos, tem dado mais destaque a essas temáticas afirmativas em campanhas eleitorais do que às temáticas históricas, voltadas para demandas operárias em torno de greve e salário.
Nesse novo cenário, já nos estertores da ditadura militar, duas perspectivas se consolidaram pela via jurídica da esquerda quanto aos temas trabalhistas e afins (questão habitacional, carestia etc.): a via alternativa e a via reformista. A primeira pode ser interpretada como sendo a do discurso contra o legalismo, o formalismo, o incentivo a lutas que poderiam gerir economia ou procedimentos não subordinados às regras de mercado ou às normas legais/formais. A hipótese “contra a lei” foi enfraquecendo para não ser confundida com mera ilegalidade. Passou a ser mais viável defender a desconstrução do sistema legal dominante por meio de certas iniciativas paralelas.
No sentido da via alternativa, incentivou-se a disseminação de mutirões em comunidades (movimento de favelas); cooperativas de alimento que anulassem o preço do atravessador (movimento da carestia); não pagamento de prestações de casa própria (movimento dos mutuários); incentivo à autogestão de empresas falidas; ocupação de terra ou de habitações. No âmbito do Direito do Trabalho, foram propostas alternativas a favor da criação de comissões de empregados com poder local — ou mesmo para negociação coletiva, como forma de o assunto não precisar chegar ao Poder Judiciário. A CUT (Central Única dos Trabalhadores) defendeu o contrato coletivo de trabalho que pretendia se contrapor ao legalismo, tema que analisaremos mais adiante.
Essa via alternativa “mais pura” propunha a criação de sistemas que se chocassem com o dominante, estimulando ainda contradições no próprio sistema dominante. Daí certa influência do direito vivo e direito achado na rua, de que falamos, com a preponderância do justo sobre a lei, e de um marxismo não ortodoxo. Importante avaliar que a via alternativa sempre foi mais atraente, especialmente para jovens, por preservar o senso mais espontâneo de rebeldia e de inconformismo com o status quo.
Já a via reformista, sempre mais eficiente, porém imediatista e sem o brilho da outra, facilmente se confunde com forças aliadas mais moderadas. O risco do reformismo é ser acusado de revisionismo, como se alguém “traísse a causa”, crítica típica do marxismo-leninismo dogmático contra seus inimigos. Outro risco é ser considerado evolucionista, como se essa ideia levasse a uma opção cômoda, aquela de esperar sentado a revolução. Já os reformistas consideram que são eles que constroem e mudam efetivamente as coisas, só que sem muita grita. O reformismo aparenta, assim, mais maturidade e mais possibilidade de realizações concretas, mas também é mais pessimista quanto à realização de uma revolução clássica. A busca pela via mais eficiente não tem fim, porque não existe regra absoluta. Na verdade, as vias se complementam.
Entretanto, nem a via alternativa nem a via reformista coincidem com a teoria pura de Marx e Engels, nem é possível falar que entre os marxistas houve algum consenso doutrinário. Salvo raras exceções na história do marxismo (Bernstein), não foram apresentadas análises assumidamente revisionistas. Mesmo a autocrítica é de baixa intensidade. Em geral, os marxistas citam incansavelmente frases de Marx e Engels para fundamentar seus pontos de vista. Parece óbvio que não se pode analisar o direito sem levar em conta as contribuições teóricas “burguesas”, o que deveria colocar os marxistas numa posição mais humilde.
Há ainda a tendência da esquerda de “morrer em pé”, de “marcar posição”, onde o orgulho buscaria demonstrar pureza ideológica. Essa atitude, contudo, responde a uma performance individual, nem sempre respondendo à necessidade da coletividade, conforme ocorreu com a discussão em torno da terceirização, da qual falaremos mais adiante.
A partir do final dos anos 1990, a via reformista se consolidou, posto que as vias mais alternativas, em alguns casos, acabaram se aproximando naturalmente das ideias neoliberais de flexibilização. A proposta do contrato coletivo de trabalho abraçado pela CUT não existiu de fato. Já os acordos coletivos de trabalho temporário e de banco de horas sugeridos pela Força Sindical foram transformados em lei. As comissões de empregados não se efetivaram como era esperado pela esquerda, enquanto as intersindicais sim, e com grande chance de perda de direitos individuais, tema abordado a seguir.





4. ANÁLISE DE DOIS CASOS DE LUTA

Analiso aqui dois temas emblemáticos que nas últimas décadas foram amplamente discutidos e serviram de palco para a exposição de posicionamentos ideológicos, técnicos e econômicos envolvendo diretamente o Direito do Trabalho: o negociado sobre o legislado e a terceirização. O leitor deve estar cansado de ouvir falar de ambos os assuntos, por isso não entrarei em maiores detalhes. O objetivo é tão somente verificar até que ponto o discurso da esquerda brasileira tem sido coerente com os próprios princípios; e até onde colabora, de fato, para o fortalecimento dos trabalhadores, dos sindicatos e do Direito do Trabalho. Pretendo ainda refletir sobre a diversidade de atuação existente entre os que defendem os interesses da classe trabalhadora. Não me refiro à diversidade de posições partidárias, e sim a interesses profissionais e de categorias, uma vez que os princípios ideológicos nem sempre coincidem com os interesses pessoais.


4.1. Negociado sobre o legislado

O “negociado sobre o legislado” tem atraído tanto defensores quanto opositores. Não se trata, evidentemente, de infringir ou fraudar a lei, e sim de permitir que as partes disponham de formas distintas de comando da lei. Tal permissão pode estar expressa na própria lei, conforme costuma ocorrer nas regras dos contratos civis (leis dispositivas). No Direito do Trabalho, além das negociações individuais, existe a possibilidade de negociação coletiva, e aqui também se pode recorrer ao negociado sobre o legislado. Nesse caso, trata-se de uma flexibilização consentida pela doutrina, já que na negociação individual o trabalhador se encontra numa posição enfraquecida, por sua natureza social e pela subordinação jurídica.
A chamada “desregulamentação”, por outro lado, se dá quando algumas leis imperativas são revogadas e abrem brecha para que as partes criem regras próprias. Eventualmente a desregulamentação é confundida com a flexibilização, uma vez que ambas normalmente visam reduzir a burocracia e os custos do empregador. Contudo, no caso da desregulamentação não se pode dizer que haja sobreposição ao legislado, já que não há lei regulamentando a própria desregulamentação.
 Tanto os que são a favor quanto os que são contra o negociado sobre o legislado enfrentam-se munidos de argumentos técnicos, sociais e políticos. Uma questão a ser indagada é se ser contra ou a favor é uma questão programática da esquerda ou algum princípio a ser respeitado. Ou, quem sabe até, mera consequência de uma conjuntura de correlação de forças. E quem exatamente se beneficia com o negociado sobre o legislado? Os trabalhadores, os neoliberais, os sindicatos, os advogados? Entendo que para a esquerda esse tema sempre foi mais conjuntural que estrutural.
Na década de 1980 havia significativa rejeição ao legalismo, própria da esquerda que vinha de um longo período de ditadura, sendo comum a defesa de propostas alternativas. E não me refiro apenas à doutrina oficial do direito alternativo, discutido em cursos universitários, mas também às propostas alternativas defendidas pelos sindicatos “combativos”. Para estes, o que estava em jogo era o fortalecimento das organizações de base dentro das empresas e uma negociação coletiva que rompesse com os limites da lei e o poder normativo da Justiça do Trabalho, entendendo que esse poder desestimulava as negociações coletivas e as greves. A Justiça do Trabalho também era recorrentemente criticada em função de sua morosidade, de seus acordos e decisões desvantajosas para os trabalhadores. Daí surgirem, por parte do sindicalismo “combativo”, propostas de criação de comissões de trabalhadores em empresas e de contrato coletivo de trabalho, este último defendido pela CUT.
É bom registrar que a Constituição de 1988 elevou a possibilidade de flexibilização da negociação coletiva sem qualquer protesto da esquerda. E deu “passe livre” para os sindicatos negociarem a redução do salário dos trabalhadores sem qualquer contrapartida. Nesse ponto, os sindicatos sairiam vitoriosos porque, em caso de impasse na negociação sobre a redução de salário, o Judiciário não mais poderia substituir essa negociação por uma decisão judicial, o que era permitido pela Lei n.o 4.923, de 1965, sancionada durante a ditadura. Por outro lado, essa lei impunha uma série de limites para que se implementasse a redução salarial, entre os quais o próprio percentual de redução (25%), a comprovação da necessidade econômica, a redução concomitante da jornada de trabalho e o prazo máximo de três meses para que a situação se regularizasse, prazo que poderia ser prorrogado em assembleia.
Não houve até hoje nenhuma iniciativa por parte dos sindicatos, nem mesmo da esquerda em geral, de procurar extinguir ou regulamentar esse ponto sacramentado na Constituição de 1988. Como também não houve nenhuma tentativa de aplicar a antiga lei, ainda não totalmente revogada de modo formal. Pelo contrário, a intenção dos sindicatos tem sido a de que prevaleça o negociado sobre o legislado como forma de poder. Não à toa eles têm respaldado a aprovação de leis nesse sentido[47].
Na década de 1980 e ainda no início da de 1990, os sindicatos da CUT defendiam o contrato coletivo de trabalho, que poderia ganhar proporções supralegais. José Siqueira Neto, advogado sindical dos metalúrgicos do ABC e importante jurista de direito sindical, publicou em 1991 o livro Contrato Coletivo de Trabalho: perspectiva de rompimento com a legalidade repressiva, que expõe com clareza a tese já indicada no título. O autor informa, na página 32 do livro, que em fevereiro de 1988 o Departamento Metalúrgico Estadual da CUT apresentou à Fiesp uma pauta de reivindicações que, entre outras propostas, incluía a de romper a limitação anual de negociação e de renunciar ao direito de instaurar dissídio coletivo na Justiça do Trabalho. Siqueira Neto era um defensor radical da liberdade de negociação por meio de comissões locais, sendo contrário ao dirigismo estatal, ao paternalismo, ao poder normativo e ao imposto sindical. Defendia um sindicato adepto da linha conciliatória, que, segundo ele, seria diferente dos “sindicatos amarelos” e dos conflitivos. Sua proposta era criar um sistema de negociação permanente e autônomo, de fato, em relação à legislação repressiva.
A proposta do contrato coletivo de trabalho foi abraçada pela CUT por algum tempo, mas a entidade sempre teve dificuldade de expor aos trabalhadores, de forma objetiva, em que essa proposta diferia das demais negociações coletivas, cuja prioridade era o reajuste salarial. Também não ficava claro o ponto de conflito entre essa via alternativa e a legislação em voga, o que certamente dependeria de sua efetiva realização, o que, aliás, nunca ocorreu.
A inflação galopante na década de 1980 gerava a necessidade de sucessivos reajustes dos salários. A regra do “gatilho”, isto é, de reajuste automático quando a inflação atingia determinado índice, já era praticada em muitos acordos coletivos e passou a ser prevista em lei (Plano Cruzado de 1986). Porém, a partir do congelamento de preços e salários, colocou-se a dúvida jurídica sobre se deveria prevalecer a regra da lei nova ou o cumprimento do já pactuado anteriormente.
A Lei Salarial n.o 7.788, de 1989, estabeleceu o seguinte dispositivo, comemorado pelos sindicatos: “As vantagens salariais asseguradas aos trabalhadores nas convenções ou acordos coletivos só poderão ser reduzidas ou suprimidas por convenções ou acordos coletivos posteriores” (§ único do art. 1º). A lei, apresentada ao Congresso naquele ano da primeira eleição para presidente da República após a ditadura, foi promulgada diretamente pelo parlamento, sob a presidência do senador Nelson Carneiro. A aprovação contrariou o veto do presidente José Sarney, posto que tal dispositivo inexistia na MP n.o 70, de 19 de junho de 1989, que precedeu a Lei Salarial.
Todavia, o Plano Collor, de 1990, revogaria essa lei referente ao negociado sobre o legislado. Esse plano econômico foi aquele historicamente controverso que “confiscou” os depósitos bancários da população indiscriminadamente (acima de NCZ$ 50 mil, por 18 meses), deixando milhares de empresas à deriva, sem capital de giro. A solução adotada pelo empresariado foi pressionar os sindicatos para a realização de acordos coletivos com redução de salários e de jornada, sem critérios e sem compensações em estabilidade para os trabalhadores.
No governo Itamar Franco, por pressão dos sindicatos, a regra do negociado sobre o legislado seria novamente aprovada e de forma mais ampla. Por meio do § 1º do art. 1º da Lei n.o 8.542, de 1992, definiu-se que: “As cláusulas dos acordos, convenções ou contratos coletivos de trabalho integram os contratos individuais de trabalho e somente poderão ser reduzidas ou suprimidas por posterior acordo, convenção ou contrato coletivo do trabalho.” Não se tratava mais de o negociado prevalecer apenas em casos de reajustes salariais, mas em qualquer negociação. Finalmente, o negociado se sobrepunha ao legislado, fato também comemorado pelos sindicatos e pela esquerda e que duraria até o advento do Plano Real[48], em 1994.
Pode soar estranho que o governo Collor, considerado neoliberal, e o governo FHC, que passou a ser acusado de neoliberal pela esquerda, tenham se posicionado contra a proposta dos sindicatos de privilegiar o negociado sobre o legislado, fixada nas duas leis acima citadas. Nos dois casos prevaleceu o fator político, pois ambos os presidentes procuraram criar regras de flexibilização sem que parecessem uma conquista sindical. Podemos nos esforçar para dizer que tecnicamente a proposta da CUT tinha a finalidade de “afrontar a lei”, enquanto a dos liberais a de simplesmente suplantar a lei de forma legal (lei permissiva). Também há uma sutileza importante que faz muita diferença. As duas normas legais citadas tinham a finalidade de impedir que uma lei superveniente viesse a neutralizar o que havia sido negociado pelo sindicato. Não era bem esse o interesse de Collor e FHC, que não queriam perder seu poder de editar medidas provisórias interrompendo o que havia sido negociado pelos sindicatos. Mas, para os cutistas e para alguns neoliberais mais radicais, a intenção era a de realmente “romper” a lei já existente[49]. Mas as duas leis já deram um passo importante no sentido de dar maior garantia às clausulas coletivas, defendendo-as de eventuais mudanças de políticas governamentais.
O governo Collor já tinha a intenção de flexibilizar a CLT, criando até mesmo uma comissão de juristas que propôs a inclusão do seguinte artigo na CLT: “A presente lei disciplina as relações individuais de trabalho urbano, rural e avulso, na ausência de instrumento normativo que disponha de modo diverso, ressalvadas as garantias constitucionais.” Como é fácil observar, essa proposta expressava o pensamento neoliberal radical, deixando a CLT de ser uma lei imperativa para transformá-la em dispositiva, permitindo, assim, o “rompimento” da lei em vigor por meio de negociação. Apenas garantia que a negociação fosse coletiva, ressalvando os direitos garantidos pela Constituição.
Com o sucesso do Plano Real e a reeleição de FHC, tiveram início as privatizações, as derrotas das grandes greves (com destaque para a dos petroleiros de 1995) e a ausência de reajustes salariais por meio de leis. Os salários passaram a depender exclusivamente das negociações coletivas ou dos pequenos percentuais deferidos pelo poder normativo. É bom lembrar que a própria Justiça do Trabalho sofreu ameaça de extinção nessa década, por conta do projeto de Aloysio Nunes que tramitou no Congresso, mas não foi aprovado.
É nesse cenário que o negociado sobre o legislado começou a adquirir, efetivamente, uma conotação mais polêmica. Mas, com a morosidade dos trâmites para a aprovação do projeto de flexibilização do governo, empresários e parte do movimento sindical começaram a produzir acordos nesse sentido. Outra parte do sindicalismo, não ligada à CUT e sim à Força Sindical, que tinha como seguidor o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, o maior do país, promoveu propostas de flexibilização com o propósito de mudar a lei.
O episódio da convenção coletiva do trabalho temporário, ocorrido em 1996, é ilustrativo desse processo, porque revela que quem realmente acabou por negociar “contra a lei” foi o grupo de tendência sindical mais moderada. Nesse caso, a intenção não era afrontar a ordem, e sim utilizar a convenção coletiva como meio de transformar a proposta em lei, o que seria realizado com sucesso. Mas a negociação assinada pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo foi declarada ilegal pela Justiça do Trabalho em ação movida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). Já o governo FHC apoiou politicamente a proposta, com a apresentação, pelo ministro do Trabalho, Paulo Paiva, de um projeto em nome do Executivo que daria origem à Lei n.o 9.601, de 21 de janeiro de 1998.
Essa convenção coletiva teve um papel histórico, ainda que haja pouca referência sobre o episódio nos atuais textos sobre o tema. Por esse motivo abordarei o assunto de forma mais detalhada. O próprio texto da convenção coletiva já se apresentava como projeto de lei. Pela cláusula 14ª, as partes se comprometiam a “enviar ao Congresso Nacional cópia desta avença para que o legislador possa adequar a legislação brasileira às modernas necessidades e realidades do mercado de trabalho, prevenindo-se eficazmente o desemprego”. Algumas cláusulas também ficavam “condicionadas à edição pelo governo federal de legislação e regras específicas”, conforme determinação expressa da cláusula 15ª. Entre as cláusulas com condicionantes encontravam-se a que dispensava o empregador do recolhimento do FGTS (cláusula 6ª), a que equiparava a contribuição do INSS do empregador à do empregado (cláusula 8ª) e a que isentava o empregador de recolher (cláusula 9ª) a favor do salário-educação, do Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) e do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).
A convenção coletiva criava, ainda, dois tipos de contrato de trabalho: o individual flexível (CTIF); e o coletivo flexível (CTCF). Tais contratos deveriam ficar “dispensados de anotação da carteira de trabalho, porém devem ser escritos para efeito previdenciário” (cláusula 3ª); “a contratação será por tempo determinado, pelo período mínimo de três meses, podendo ser renovado sucessivamente até o limite máximo de dois anos” (cláusula 4ª), sendo os primeiros 30 dias considerados de experiência. “O trabalhador receberá de acordo com as horas efetivamente trabalhadas”, ficando a remuneração do repouso semanal de forma proporcional (cláusula 5ª). Tentava-se criar a indenização de um salário em caso de rescisão antecipada (art. 7º). Esses foram os principais tópicos da “convenção projeto”.
Embora se possa atribuir à Força Sindical uma grande vitória, o seu impacto liberal foi reduzido pela intervenção de FHC, que vetou o § 3º do art. 1º, que permitia a negociação direta e individual em empresas de até 20 empregados[50]. Segundo a justificativa do veto, “o texto constitucional, em todos os momentos em que permite a flexibilização de direitos trabalhistas, condiciona-o à negociação coletiva”. Tal episódio demonstra que FHC não quis se responsabilizar pela implantação da flexibilização total em larga escala, restringindo-a para privilegiar a negociação coletiva[51].
A segunda grande norma de flexibilização a ser implementada foi a que tratou do banco de horas. Segundo José Eleno Bezerra[52], diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e defensor da flexibilização, os acordos coletivos sobre o banco de horas já eram realizados pelos metalúrgicos de São Paulo e do ABC, o que permitia, inclusive, garantir empregos. A lei do banco de horas teria surgido de uma proposta do Sindicato da Construção Civil.
A mesma Lei n.o 9.601, de 21 de janeiro de 1998, que cuidou do trabalho temporário, alterou o art. 59 da CLT para possibilitar a implantação do banco de horas. Com a regulamentação legal desse expediente, teve fim a longa tradição de restringir a compensação de horas suplementares aos sete dias da semana, regra existente antes mesmo da criação da CLT, por meio de decretos de 1932 dirigidos à indústria e ao comércio. O banco de horas facilitou o não pagamento pelo empregador das horas extras que ultrapassavam a jornada de oito horas. Por isso criou-se um “crédito” a favor do empregado que poderia ser “pago” como compensação, posteriormente, em momento de menor demanda da empresa.
O banco de horas efetivamente foi um primeiro grande passo para a adoção da flexibilização no Brasil. Houve certa dúvida sobre a obrigatoriedade de sua utilização individualmente ou coletivamente, tendo a jurisprudência do TST (Tribunal Superior do Trabalho) optado pela segunda hipótese. Já o trabalho temporário não teve a repercussão esperada porque, como dito, o projeto não foi aprovado na íntegra.
As pressões em prol do negociado sobre o legislado continuaram vigorosas no início do século XXI, mas agora a expressão se tornava uma palavra de ordem mais identificada com o neoliberalismo. Um projeto de repercussão foi o PL n.o 5.483, de 2001, que alteraria o art. 618 da CLT para os seguintes dizeres: “As condições de trabalho ajustadas mediante convenção ou acordo coletivo prevalecem sobre o disposto em lei, desde que não contrariem a Constituição Federal e as normas de segurança e saúde do trabalho.” Esse projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados após diversos adiamentos. Já no Senado, com Lula já eleito, não chegou a ser colocado em votação. O governo do PT praticamente congelou todos os projetos que diziam respeito à flexibilização sem apresentar nenhum outro que a restringisse.
Somente com a Reforma Trabalhista de 2017 se aprovaria o negociado sobre o legislado, ainda que de forma não generalizada, pois o novo legislador procurou discernir em artigos diversos o que poderia ser negociado e o que não poderia.
O atual caput do art. 611–A estabelece que “a convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei”, mas listando o que é permitido e o que é proibido (art. 611–B). A reforma trouxe uma novidade, a permissão para a negociação individual (sem interferência sindical) no rol de hipóteses negociáveis quando o empregado é portador de diploma de nível superior e recebe salário mensal superior a duas vezes o limite do benefício previdenciário, o que, em média, corresponde a 11 salários mínimos. Essa distinção de faixa de salário para efeito do direito, ainda que para negociação, nunca tivera previsão legal tão ampla no Brasil, sendo vista apenas em situações de reajuste salarial.
A Reforma de 2017 também criou uma compensação no caso de negociação coletiva sobre redução de salário, uma espécie de regulamentação. O § 3º do art. 611–A estabelece que “se for pactuada cláusula que reduza o salário ou a jornada, a convenção coletiva ou o acordo coletivo de trabalho deverão prever a proteção dos empregados contra dispensa imotivada durante o prazo de vigência do instrumento coletivo”. Não deixa de ser um ponto positivo para o trabalhador, sobre a qual a Constituição de 1988 é omissa. A questão mais prática, porém, restou em relação à flexibilização da jornada (não dos salários). O art. 611–A permite a negociação do banco de horas anual; intervalo intrajornada, respeitado o limite mínimo de trinta minutos para jornadas superiores a seis horas; modalidade de registro de jornada de trabalho.
Outro capítulo do negociado sobre o legislado ocorreu com a possibilidade de negociação individual no âmbito da empresa. Embora tenham existido projetos de negociado sobre o legislado tanto no campo do coletivo quanto no do individual, a tendência dominante, mesmo quando endossada por neoliberais, era no sentido de fortalecer a negociação coletiva. A negociação por meio de comissões de empregados era defendida, mas não poderia ser coletiva em face da disposição constitucional que exige a presença do sindicato. Todavia, a norma não impedia a existência de comissões para realizar acordos individuais; era a lei trabalhista que não considerava válida a negociação individual prejudicial ao empregado (art. 468 da CLT). Só o acordo homologado judicialmente teria valor.
As propostas sobre comissões de trabalhadores nas empresas, ainda que paritárias, eram antigas, chegando a haver legislações isoladas[53] que eram bem-vindas, desde que não ferissem os direitos dos empregadores e dos sindicatos. Em geral, encaixavam-se nos discursos contra a morosidade da Justiça do Trabalho, e eram a favor de “vias alternativas”. O tema surgiu de forma polêmica na década de 1990 por meio do PL n.o 3.118, de 1992, proposto pelo deputado Victor Faccione, e, depois, por um projeto do Ministério do Trabalho sob a gestão do ministro Pimentel, ex-presidente do TST[54]. Porém, a Lei n.o 9.958, de 2000, decorrente do PL n.o 4.694, de 1998, encaminhado pelo presidente FHC, modificou a CLT, regulando as comissões de negociação prévia. O projeto original obrigava as empresas com mais de 50 empregados a constituir a comissão. Entretanto, na tramitação do projeto, tal regra não foi adotada e as comissões se tornaram facultativas.
Essa alteração de última hora, promovida pelo parlamento, fez com que as comissões não fossem efetivamente formadas nas empresas. Por outro lado, foram amplamente criadas as comissões intersindicais previstas na lei. Com o fim dos juízes classistas de empregados e de empregadores da Justiça do Trabalho (EC n.o 24, de 1999), muitos ex-classistas passaram a atuar nas comissões, levando até elas a experiência adquirida na Justiça do Trabalho. Tal experiência somou-se à já exercida pelos sindicatos no trato das homologações de termos de rescisão de contrato de trabalho.
O que na prática ocorreu é que muitas homologações de rescisão deixaram de ser executadas para se transformarem em transações, com força de coisa julgada. Não houve redução relevante de demandas judiciais, já que após o empregado fazer o acordo no sindicato era comum ajuizar a ação com pedido de anulação com grande chance de vitória. Além deste, havia outro problema. A lei criou a obrigatoriedade de que a negociação extrajudicial fosse realizada nessas comissões antes do ajuizamento da reclamação trabalhista, aspecto que, em 2009, foi declarado inconstitucional pelo STF por ferir o acesso à justiça. Desde então, as comissões praticamente sucumbiram, deixando o rastro de longos anos de com realizações de quitação em forma de transação.
Mas o que eu quero ressaltar com essa experiência? Que a implantação das comissões de conciliação prévia foi uma forma de dar maior poder aos sindicatos, uma espécie de negociado sobre o legislado no âmbito do direito individual. E não só aos sindicatos de empregados, também aos de empregadores, já que a comissão era paritária. A campanha contra elas foi conduzida pela OAB, que ajuizou a ação de inconstitucionalidade contra a obrigatoriedade da negociação extrajudicial antes do ajuizamento da ação judicial. A OAB não agiu apenas em prol do acesso à justiça. Agiu também em nome da defesa dos interesses do advogado, visto que a presença deste nas negociações extrajudiciais sequer era exigida, embora muitas comissões fornecessem advogados formais para dar assistência aos trabalhadores.
O fracasso das comissões de conciliação prévia correspondeu à perda de significativo poder sindical. E essa supressão de poder foi acompanhada do aumento do preconceito contra os sindicatos por parte de juízes e de advogados que defendiam causas trabalhistas individuais. Também aumentou o preconceito dos sindicatos contra a Justiça do Trabalho. As decisões judiciais de declaração de nulidade, não só das transações das comissões, mas também de cláusulas coletivas, aumentaram bastante, ignorando-se até mesmo a força da negociação coletiva. E os sindicatos passaram a ignorar também a Justiça do Trabalho em numerosas ocasiões, atitude reforçada pelo enfraquecimento do poder normativo sobre questões econômicas (EC n.o 45, de 2004). Foi mantido o dissídio de greve para julgar abusividade. E a Justiça do Trabalho foi cada vez mais se transformando em fórum para ações individuais e condenatórias, em geral para quem não trabalha mais para o réu, com ritos bem semelhantes aos dos demais poderes judiciários. Sem dúvida, um caminho voluntário para a unificação do Judiciário brasileiro, o que decerto facilita a proposta daqueles que defendem o fim da atual Justiça do Trabalho.
No campo sindical, embora houvesse evidente conflito entre CUT e Força Sindical, algo unia os sindicalistas: tudo o que pudesse lhes trazer poder institucional. Um sindicalista que comunicava à categoria ter selado um acordo de flexibilização para salvar empregos poderia ter o mesmo impacto de outro sindicato ao anunciar que não assinou determinado acordo para não suprimir direitos dos trabalhadores. O importante era o poder; o resultado ficava adstrito ao seu exercício.
Existe outra separação, esta mais histórica, que se reflete no Direito do Trabalho: a que distancia os sindicalistas dos advogados trabalhistas de causas individuais. Acho mesmo que o Direito do Trabalho sempre teve duas vertentes de origem: uma mais corporativista, que procura fechar o mercado, criar tabelas, atuar enquanto grupo profissional em sindicatos e ordens profissionais, criando normas de proteção para determinada coletividade; e outra que tem origem mais no direito civil, é voltada para a relação individual e bilateral e composta pela maioria dos advogados e juízes trabalhistas.
Esses dois segmentos, sindical e jurídico, ainda que não antagônicos, possuem princípios um tanto distintos. O segundo segmento é bem mais atuante junto à Justiça do Trabalho, enquanto o outro já esteve mais presente na instituição judicial, mas vem se distanciando desta nos últimos tempos por vários motivos. Entre eles, incluem-se o caso já relatado em torno das comissões de conciliação prévia; o fim dos juízes classistas (2000); a descaracterização do poder normativo (2004); as decisões judiciais de anulação de cláusulas coletivas, que as desmoralizam e chegam a gerar implicações financeiras para o sindicato; e a “concorrência” do Ministério Público do Trabalho (MPT) com o sindicato, que, embora não seja explícita, ocorre no seio das ações coletivas, algumas contra o próprio sindicato. Falaremos do MPT mais adiante.
O setor mais ligado aos sindicatos representa os trabalhadores da ativa e depende de conquistas imediatas que possam ter repercussão e lhes dar legitimidade perante a categoria. Assim, a decisão em torno de um processo judicial não pode esperar por muito tempo porque as eleições sindicais se realizam a cada três anos e é preciso mostrar realizações. Sem sonhar com grandes condenações, pois os sindicatos não almejam quebrar empresas, o que reduziria sua base de representação sindical.
O segmento mais voltado para demandas individuais, que defende o trabalhador (normalmente já demitido) por meio de regras processuais, tem a possibilidade de receber uma alta quantia condenatória. Esse segmento, mais preocupado em receber seu crédito e menos com uma possível falência da empresa devedora, foi mais atingido pelo negociado sobre o legislado por diminuir o grau de imperatividade da lei do trabalho.
Embora seja controverso concluir se, no final das contas, a flexibilização é boa ou ruim para o empregado, com ela há um rasgo de possibilidade de este se manter no emprego. E a manutenção do emprego é essencial no nível individual, ainda que signifique perda de direitos da classe. O ponto fraco do Direito do Trabalho no Brasil é justamente não oferecer respostas a quem foi demitido por ser eminentemente contratualista (no plano individual e no coletivo), não “possuindo regras” para o enfrentamento do desemprego no mercado.
É notório que o sindicalismo no Brasil virou, basicamente, um órgão de negociação coletiva com ampla representação. Hoje um sindicato não vive sem negociação coletiva, que é o que justifica a sua existência, apesar de esta não ser uma premissa eterna, podendo ser alterada por uma nova conjuntura. Portanto, o próprio sindicato fecha as portas para o demitido, visto que ele já não está vinculado à negociação coletiva. Nesse caso, é o advogado trabalhista que atua 24 horas por dia que o acolhe, a fim de buscar extrair o que puder, financeiramente, do ex-empregador.


4.2. Terceirização

A polêmica em torno do negociado sobre o legislado decorreu de um longo processo, com altos e baixos. Além de revelar que o sindicalismo de eficiência ganhou espaço político, apagando um pouco o brilho do sindicalismo combativo, mostrou que a vertente do Direito do Trabalho possui linhas genéticas distintas. Já a campanha contra a terceirização envolve mais atores. Afora a atuação dos parlamentares de esquerda, há os servidores públicos organizados em suas entidades, o MPT e os próprios terceirizados enquanto massa difusa de trabalhadores semiempregados.
Com a disseminação da terceirização no país a partir da década de 1990 e a consequente precarização do trabalho, o TST tomou a iniciativa de limitar sua prática por meio da Súmula n.o 331, de 1993, o que por muitos anos foi aceito. O TST e o MPT entendiam que a terceirização era um fato, mas que deveria se limitar à atividade-meio e não à atividade-fim, numa construção jurisprudencial e teórica em parte oriunda do direito administrativo desde a instituição do Decreto-lei n.o 200, de 1967. Assim, a legislação do trabalho era omissa a respeito do tema, tratando apenas da subcontratação em caso de obra (art. 455 da CLT), que, inclusive, permitia a terceirização da atividade-fim. Não me alongarei sobre a teoria das atividades-meio e atividades-fim por ser um assunto bastante estudado e que já ganhou capítulos inteiros em livros acadêmicos.
Esse entendimento jurisprudencial do TST, que parecia consolidado nos meios judiciais trabalhistas, começou a encontrar resistência no âmbito do STF, com sua nova composição de ministros, e, naturalmente, sob a pressão de empresários. Mas também dos próprios governantes, que arcavam com dívidas altas, ainda que, pela Lei de Licitação, a administração pública não tenha de responder pelos créditos trabalhistas dos empregados de empresas contratadas. Essa lei não vinha sendo aplicada pela Justiça do Trabalho, que gerou intervenção do STF.
A decisão a favor da constitucionalidade da Lei de Licitação se deu em 2011, por meio da conhecida Adin n.o 16. Por consequência, o TST alterou a redação da Súmula n.o 331 com o intuito de restringir as condenações contra a administração pública somente em casos de culpabilidade. No entanto, essa restrição foi de pequena monta, tal a falta de fiscalização ou de definição sobre como realizá-la, a fim de evitar a responsabilização da administração pública. Desse modo, a polêmica continuou, principalmente em função do setor privado.
Uma ação movida pelo MPT se tornaria emblemática e atrairia a atenção do STF: a ação civil pública instaurada contra a Celulose Nipo Brasileira S/A, empresa acusada de contratar outras com a mesma atividade-fim que a sua. A companhia foi condenada na Justiça do Trabalho a se abster de contratar terceiros serviços relacionados à sua atividade-fim, sob pena de multa, o que deu ensejo ao Recurso Extraordinário n.o 713.211. Esse processo, em 2014, ganhou repercussão geral sob a relatoria do ministro Luiz Fux, que entendeu pela liberdade de contratação, já que a Constituição estabelece que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Essa ação foi muito discutida, mas seria outra, julgada mais tarde, que firmaria a decisão definitiva sobre a permissão da terceirização na atividade-fim da empresa tomadora. Depois, já estando em vigor a Reforma Trabalhista, o tema voltaria a ser apreciado pelo STF em 2018, agora por meio da ação APDF n.o 324 (ajuizada pela Abag – Associação Brasileira do Agronegócio, em 2014), cujo relator foi Luís Roberto Barroso. Em seu voto, o ministro destacou a importância de se fincar a tese mesmo já havendo lei permitindo a terceirização da atividade-fim da empresa contratante. Segundo o relator, “mesmo após as mudanças legais o TST não revogou a Súmula 331 e a Associação Nacional dos Magistrados (Anamatra), na Segunda Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, recomenda a não aplicação das novas normas, ao fundamento de que são inconstitucionais, por violarem a dignidade do trabalhador e o valor social do trabalho”. Aqui fica claro o conflito de entendimento entre o TST e o STF, pelo menos entre a maioria de seus membros.
Retomando os idos de 2014, quando a presidente Dilma Rousseff foi reeleita com uma pequena diferença de votos para o concorrente, e o país já estava com protestos de rua, o tema da terceirização ganhou grandes proporções, a ponto de gerar um dos debates mais calorosos dos últimos tempos na Câmara dos Deputados.
O Projeto de Lei n.o 4.330, de regulamentação da terceirização, era de 2004. Porém, na década de 2010 a terceirização já estava totalmente enraizada na economia brasileira. Não podemos, a esta altura, considerar apenas as relações contratuais entre empregados e empregadores, visto que as próprias empresas já estavam fragmentadas em pequenos empreendimentos e empreendedorismos. Também já era larga a “pejotização”[55], espécie de terceirização da classe média. Não havia como negar, portanto, a existência da terceirização: ou se propunha o seu fim ou se procedia à sua regulamentação. Mas não havia nenhum projeto na esquerda para acabar com a terceirização.
Embora a esquerda fosse contra a terceirização, sabia muito bem que um projeto dessa natureza jamais seria aprovado. O discurso contra, contudo, persistia. O próprio TST já admitia a terceirização da atividade-meio, e esta parecia ser uma via intermediária mais palatável. Ressalto, porém, que os parlamentares de esquerda também não apresentavam um projeto de regulamentação do que seria essa atividade-meio, sendo que a própria Súmula n.o 331 do TST tinha uma redação genérica e pouco inteligível[56].
Saber o que é atividade-meio às vezes não é fácil, pois exige um conhecimento global da empresa em questão. A legislação do trabalho sempre esteve voltada para o contrato bilateral, independentemente da finalidade da companhia. Decerto o enquadramento sindical e os sindicatos poderiam servir de referência, mas a tendência dos juízes era ler o contrato social juntado aos autos. Não resta dúvida de que havia insegurança jurídica na definição da atividade-meio, o que exigia uma regulamentação. Devo lembrar que os deputados aqui chamados de esquerda apoiavam, em sua maioria, o governo Dilma, e este externava uma posição dúbia: apesar de se manifestar contra a terceirização, por ser uma posição considerada politicamente correta, aplicava-a amplamente em sua administração.
A tramitação na Câmara dos Deputados foi longa e com vários adiamentos, revelando claramente a conduta da esquerda, que perdia a chance de produzir uma regulamentação em torno da terceirização menos danosa aos terceirizados. Os deputados de esquerda (PT, PSOL, PDT, REDE, PCdoB, entre outros parlamentares de outros partidos) procuraram o tempo todo obstruir as votações para adiá-las o máximo possível, até inviabilizar o projeto. Tal prática é sabidamente recorrente no Congresso quando algum partido se posiciona contra certo projeto. Nesse caso, entretanto, a sociedade aguardava uma posição do Legislativo sobre o assunto, ou, quem sabe, uma alternativa política ou, ao menos, que os parlamentares fundamentassem melhor a sua forma de agir.
O discurso dos deputados de esquerda era sempre o mesmo: votariam contra o projeto porque eram contra a terceirização, permitindo-a apenas para a atividade-meio. Apesar do boicote declarado por parte da esquerda, o Projeto de Lei n.o 4.330, sobre terceirização, foi discutido e aprovado em abril de 2015 na Câmara. Portanto, antes do impeachment de Dilma Rousseff (ocorrido em agosto 2016) e da Reforma Trabalhista (aprovada em julho de 2017). Mesmo permitindo a terceirização na atividade-fim, a proposta continha pontos importantes a favor dos terceirizados, e não tenho dúvida de que a esquerda poderia ter conseguido mais pontos positivos ainda que tivesse atuado na negociação de modo mais firme. Aprovado na Câmara, o projeto foi remetido ao Senado.
Listo aqui, rapidamente, alguns pontos do projeto aprovado na Câmara que foram considerados positivos para os terceirizados. Dirigia-se apenas ao setor privado, muito embora no final da votação tenha havido a tentativa de ampliá-lo. Para a realização da terceirização era exigida uma caução por parte da contratada, em função da quantidade de mão de obra. Essa caução só seria liberada após a contratada comprovar a quitação de suas obrigações previdenciárias e trabalhistas, norma inédita no sentido de procurar garantir o crédito trabalhista. Previa-se ainda a obrigação de a contratada comprovar mensalmente o cumprimento dos encargos trabalhistas e previdenciários, com previsão de retenção de pagamento por parte da contratante, o que foi bastante detalhado no projeto. E não só comprovação do salário, mas também de horas extras, adicionais, férias, repousos, vale-transporte, 13º salário, FGTS e previdência. Isso porque o projeto estabelecia a responsabilidade solidária entre as empresas, indo além da Súmula n.o 331, que fixava somente a responsabilidade subsidiária. O projeto vetava contrato de terceirização entre empresas que possuíam identidade de sócios.
No âmbito sindical, a contratante seria obrigada a informar ao sindicato as contratações e os casos de acidente de trabalho e de retenção de fatura à contratada quando não comprovado o pagamento dos direitos trabalhistas e previdenciários. Além disso, o sindicato de trabalhadores da empresa contratante representaria os empregados da contratada quando houvesse correspondência profissional. Quanto aos direitos trabalhistas dos terceirizados, o projeto os equiparava aos empregados da contratante, na hipótese de trabalharem no mesmo local, em relação a: alimentação, transporte, atendimento médico ou ambulatorial, treinamento, sanitários e medidas de proteção à saúde e segurança; manutenção do salário e dos demais direitos previstos no contrato anterior, quando um contrato de terceirização fosse sucedido por outro com as mesmas partes, a fim de se evitar a fraude.
Após a aprovação da Câmara, o projeto foi encaminhado ao Senado, como dito, e lá ficou engavetado, sob a presidência de Renan Calheiros, que, na época, era um aliado circunstancial do PT. Não obstante, em 2017, meses antes de a Reforma Trabalhista ser aprovada, a Câmara, numa demonstração de força, aprovou um antigo projeto de terceirização (o PL n.o 4.302, de 1998) que já havia passado pelo Senado. Tratava-se da Lei n.o 13.429, de 31 de março de 2017, que alterou a conhecida lei do trabalho temporário (Lei n.o 6.019, de 1974), que regulamentava a intermediação de mão de obra. O resultado foi um retalho de lei fortemente atacado pela esquerda. Contudo, por essa nova lei, a terceirização ainda se limitava a “serviços determinados e específicos” (novo art. 4–A da Lei n.o 6.019)[57].
A esquerda se manteve inflexível em sua posição de obstruir as sessões, agora com o projeto de Reforma Trabalhista do governo Temer, sem procurar negociar para garantir um mínimo de direito aos terceirizados. A consequência dessa atuação política radical, de apenas denunciar e não negociar, foi a aprovação da Reforma Trabalhista (Lei n.o 13.467, de 13 de julho de 2017), que modificou a lei aprovada pouco antes sobre a terceirização[58] e permitiu todo e qualquer tipo de terceirização, sem, no entanto, estabelecer nenhum direito aos terceirizados.
Essa reforma foi aprovada praticamente de modo unilateral. Num momento de emoção, quatro senadoras de esquerda ocuparam a mesa do presidente do Senado para tentar, sem sucesso, impedir a sua aprovação. Assim, evidenciou-se a intransigência da esquerda, que, mesmo perdendo a votação, mantinha uma postura de luta, o que pode gerar um efeito acalentador para a própria esquerda, mas sem ganhos para os trabalhadores. E nem se diga que esse tipo de protesto levou a ganhos eleitorais. No ano seguinte, haveria rejeição generalizada nas urnas à atuação da esquerda.
É bom lembrar que as conquistas de 1988 se deram em grande parte em decorrência da força que os sindicatos possuíam e da capacidade de negociar com o “centrão”, mesmo sem abandonar discursos mais radicais. A derrota em torno da “terceirização” para a esquerda parlamentar e trabalhista se assemelhou à derrota dos sindicatos na greve de 1995, quando houve um abalo no discurso da CUT. Depois dessa greve, o Sindicato dos Petroleiros seguiu a via parlamentar para anistiar as multas aplicadas às entidades pelo TST, o que foi atendido pelo governo FHC.
Depois, no governo Lula, foi concedida uma anistia geral aos trabalhadores[59]. Ou seja, após o fracasso da greve procurou-se reparar o dano por meio de leis personalizadas de proteção a determinados entes. Não se reformou a lei de greve, apenas se legislou para proteger os envolvidos em determinado episódio. A essa altura, a atuação parlamentar da esquerda estava fortalecida, conseguindo aprovar projetos favoráveis aos trabalhadores com mais facilidade do que por meio da negociação coletiva. Muitos sindicalistas foram para as centrais sindicais ou para a vida parlamentar. Assim, parte daquele discurso radical se manteve no âmbito parlamentar-eleitoral. Aos poucos a esquerda foi se distanciando da luta sindical de base para seguir o caminho institucional da política, onde antigas reivindicações sindicais começaram a ser substituídas por outras.
A partir de tais fatos históricos, passo a fazer algumas considerações sobre os terceirizados e o MPT.
Quem é o terceirizado e o que ele quer? Não tenho conhecimento de nenhuma manifestação produzida pelos próprios terceirizados. Talvez devido à sua natural dificuldade de se organizar enquanto “terceirizados” eles fiquem à margem das corporações. Parece-me que se trata de um trabalhador igual aos outros que pretende ter as mesmas condições de trabalho. A questão se resumiria, portanto, a demandas de isonomia, não só econômica, mas também de dignidade, a fim de que o terceirizado não seja tratado como um empregado de segunda categoria, com uso diferenciado de vestimenta e crachá, forma de pagamento, local distinto para alimentação e vestuário. Essas demandas foram atendidas em parte pela Lei n.o 13.429, de 31 de março de 2017, já comentada. Mas tal iniciativa não chegou nem perto da possibilidade de esse trabalhador ser “efetivado” pelo tomador. Pelo contrário, a existência de igualdade é demarcada pela lei, restando sua luta por melhores condições de trabalho.
No setor privado, é frequente o desejo do terceirizado de ser equiparado ao regime dos bancários, que possuem direitos específicos por conta das convenções coletivas, como a jornada de seis horas. Mas esse tipo de terceirizado não parece ser o problema principal para os trabalhadores. No âmbito privado, há prática da intermediação da mão de obra (permitida desde 1974 pela Lei n.o 6.019), que é quando o trabalhador contratado por uma empresa, chamada de interposta, é fornecido a uma outra, chamada de tomadora, e a esta fica subordinado. Uma espécie de aluguel de mão de obra. Embora tal prática seja criticada pela doutrina do Direito do Trabalho, por confrontar a CLT — segundo a qual o empregado deve se subordinar ao seu empregador e não à empresa tomadora —, ela foi mantida em sua disposição original e com o aval da Súmula n.o 331 do TST. Trata-se de condição muito pior para o trabalhador do que a do conhecido terceirizado que é empregado de uma empresa que presta serviços a outras. Mas esse trabalhador totalmente discriminado, já que trabalha lado a lado e com a mesma função daquele que é empregado, contudo sem os mesmos direitos e estando fora da CLT, não chamou muito a atenção dos políticos de esquerda, que poderiam propor o fim dessa lei na época em que tinham força no parlamento. São trabalhadores temporários, contratados em função de um período de maior demanda empresarial, como no Natal, e que depois são descartados, não tendo força, portanto, para pressionar os políticos a seu favor.
Mas o que ocorreu no Brasil a partir da década de 1990 foi o ápice do exagero: promoveu-se a mais cruel forma de terceirização e de precarização do trabalho, com a utilização de “cooperados” para a prestação de serviços gerais em hospitais, escolas, repartições públicas, condomínios etc. Os Cieps (Centros Integrados de Educação Pública), o principal empreendimento social do PDT de Brizola e do antropólogo Darcy Ribeiro, receberam elogios, contudo, seus “funcionários” eram, em grande parte, “cooperados”. O resultado foi que milhares e milhares de ações trabalhistas reconheceram o vínculo de emprego com as cooperativas e responsabilizaram a administração pública subsidiariamente, já que, inexistindo concurso público, não se poderia declarar o vínculo empregatício diretamente com a cooperadora.
A esquerda nunca organizou uma campanha para acabar com as cooperativas fraudulentas. Depois de muito tempo, o governo Dilma procurou regulamentar as cooperativas de trabalho com a sanção da Lei n.o 12.690, de 2012, que tinha como um de seus princípios a “não precarização do trabalho” (inciso IX do art. 3º). Tendo em vista proteger o cooperado, diversos direitos passaram a abrangê-lo, por exemplo, piso profissional, salário mínimo, repouso semanal remunerado, jornada de oito horas, adicionais noturno, de periculosidade e de insalubridade, seguro para acidente de trabalho. Porém, em se tratando de cooperativa, quem paga tais direitos é o próprio cooperado, já que aquela não tem patrão nem finalidade lucrativa. Em suma, as reivindicações trabalhistas foram dirigidas para dentro das cooperativas. Reafirmou-se a validade do fornecimento da mão de obra de “cooperados”, atribuindo-se a eles próprios o pagamento pelos encargos trabalhistas, em lugar de se proibir tal modalidade de cooperativa.
O setor público é o maior incentivador do trabalho terceirizado. A luta contra a terceirização nesse âmbito tem mão dupla, pois, se por um lado procura melhorar suas condições de trabalho, por outro, busca o seu próprio fim. Quando se fala em acabar com a terceirização no setor público, imagina-se que os terceirizados serão substituídos por trabalhadores concursados. Mas, certamente, os que preencherão as vagas por meio de concurso público não serão os mesmos trabalhadores terceirizados. Não há como “efetivar” o terceirizado sem concurso, muito embora isso até certo ponto tenha ocorrido com os agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias, mas foi preciso mudança a Constituição Federal a seu favor[60].
A exigência do concurso público também reduz substancialmente a quantidade de vagas. Ou seja, a prática da terceirização na administração pública é totalmente diferente da existente no setor privado. Naquela há o discurso da moralidade e da legalidade, mas há também o corporativismo dos servidores públicos, fortalecido pela liberdade sindical dos estatutários conferida pela Constituição de 1988.
O aumento da terceirização decorreu, em boa parte, da exigência de concurso público. Porém, não acredito que a extinção da terceirização resolva o problema de forma satisfatória, tanto é que não existem propostas nesse sentido. A exigência de concurso público foi um enorme avanço em prol da moralidade pública e da valorização do critério meritório. Também não podemos generalizar o terceirizado. Há aqueles que devem mesmo ter uma atuação terceirizada, quando são empregados de uma empresa que presta serviço especializado à administração pública, muitas vezes de forma esporádica ou sem necessidade de ser exercida por um funcionário público.
Também é preciso valorizar o cargo do servidor público, que, embora não seja uma profissão, implica deveres éticos. Muitos sindicatos de servidores estatutários atuam como se representassem assalariados comuns, inclusive procurando ampliar sua base de representação com novos concursados e melhorar as condições de trabalho. É raro ver no sindicalismo a preocupação com o profissionalismo e o aperfeiçoamento da máquina pública, discernindo as atividades próprias do regime estatutário (como a de policiais, juízes, promotores, fiscais, professores e técnicos, de modo geral ligados à administração e finanças), que independem do político que está no poder, das atividades secundárias, que, embora possam ser essenciais ao ambiente de trabalho e à instrumentalização (limpeza, informática etc.), são mais afeitas à contratação por meio de licitação.
Destaco que o MPT também teve um importante papel na luta contra a terceirização, inclusive com a ajuda do Ministério do Trabalho para instruir seus inquéritos. E aqui abro um parêntese para analisar o MPT, o “novo” ator da via jurídica no âmbito da Justiça do Trabalho. Com a Carta de 1988, o MPT passou a ter efetiva independência, com novos ritos de demandas coletivas (ação civil pública de 1985, Código de Defesa do Consumidor, Lei Orgânica do Ministério Público de 1993 etc.) e ampliação de atribuições para além de sua limitada função de emitir parecer nos recursos de ações individuais. A formação de seus quadros está bem próxima da formação dos juízes e dos advogados.
Embora a atuação dos membros do MPT não se origine da prática sindical, o órgão atua fortemente em ações coletivas que envolvem a defesa de categorias de trabalhadores. O MPT age apenas com base na legislação, não possuindo a prerrogativa de criar direitos por meio de negociação coletiva. Muitas dessas ações coletivas possuem pedidos de condenação de altos valores, não para pagar diretamente aos trabalhadores, mas para depositá-los em fundos, como o FAT. Se o MPT não pode ser enquadrado como sendo “de esquerda”, é fato que seu discurso tem sido bastante radical no cenário ora estudado.
O MPT também combateu fortemente as contribuições financeiras de trabalhadores aos sindicatos, previstas em normas coletivas para que se limitassem apenas aos sócios (Precedente n.o 119 do TST)[61]. As ações do MPT, entretanto, se concentraram na exigência do cumprimento de cotas para pessoas com deficiência previstas na Lei Previdenciária e contra o trabalho degradante (e o análogo a escravo). Mas uma se destacou pela quantidade e pela radicalização: as ações contra a terceirização. Algumas até com pedido para que a empresa terceirizada não realizasse contrato com a empresa tomadora, sob o risco de o sucesso da ação levar a uma provável paralisia de sua atividade, inclusive com reflexos na estabilidade dos direitos dos empregados terceirizados.
O interesse do MPT nunca foi idêntico ao dos sindicatos, apesar de não se ter registro de conflito aberto entre ambos. Por outro lado, o MPT também sempre esteve afinado com o TST quanto aos temas relacionados à terceirização. Após a derrota da campanha da terceirização e com o advento da Reforma Trabalhista de 2017, a atitude da esquerda passou a ser a de denunciá-la. Já o TST passou a ignorar as novas leis até onde fosse possível, uma vez que suas súmulas não foram mudadas, nem mesmo a de n.o 331, já desconsiderada em grande parte pelo STF. Ao que parece, o sucesso da Reforma Trabalhista ainda depende muito do fim da crise econômica no país. Como se o fato de o desemprego diminuir fosse o fator básico de análise jurídica, oportunidade em que a via econômica se sobrepõe à via jurídica.
Não resta dúvida de que a esquerda, querendo ou não, assumiu o regime democrático e se adaptou bem ao Estado burguês, seja por opção tática, seja por circunstâncias que fogem ao seu controle. E passou a participar da gestão do poder central, diretamente, por meio das eleições; indiretamente, por meio da atuação de ONGs, que recebem verbas públicas; em comissões governamentais, por meio dos sindicatos; ou ainda atuando perante o Poder Judiciário.
A esquerda deixou de ser propositiva, centrando suas críticas nas iniciativas dos neoliberais, porém sem apresentar propostas inovadoras. O resultado é uma espécie de conservantismo de esquerda, aparentemente como uma tática de resistência, mas que durante o longo período de governo de esquerda no Brasil (2003-2016) não promoveu alterações na legislação trabalhista que justificassem tal discurso de resistência. Prevaleceu uma esquerda preocupada com o purismo e a radicalidade, todavia sem contribuir efetivamente para o avanço dos direitos no campo dos assalariados.




5. O DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL A PARTIR DA DÉCADA DE 1960

O fato de o Direito do Trabalho ser com frequência considerado um protetor do trabalhador[62] serve de abrigo, naturalmente, para a via jurídica da esquerda. Muitas vezes o Direito do Trabalho é apresentado até como um direito da classe trabalhadora, o que, decerto, contraria a concepção marxista pura de que o direito, por essência, tem sua origem na classe burguesa. Seria o Direito do Trabalho um “contradireito”? Uma antítese dentro do ramo maior do direito? Certamente que não, pois encontra seu limite na existência da subordinação do empregado ao empregador. Se essa relação desigual deixar de existir, acredito mesmo que as fontes teóricas que embasaram a criação do Direito do Trabalho se esvaziariam e os temas hoje tratados sob sua alçada passariam para a do Direito Civil.
A teoria do Direito do Trabalho surgiu apontando para a compensação de direitos entre desiguais, a fim de atenuar a superioridade do empregador. Tal premissa é bastante usada em cursos de direito para definir o Direito do Trabalho, podendo até sugerir semelhança com o que Marx propagou (“o direito igual é um direito desigual para trabalho desigual”), uma vez que cada um produz e necessita de forma diferente. Daí Marx concluir, em seu texto Crítica ao Programa de Gotha, que “o direito não teria que ser igual, mas desigual”. Entretanto, longe de propor um Direito do Trabalho, Marx pretendia combater o próprio direito em seu conjunto, afirmando que “o direito só pode consistir, por natureza, na aplicação de medida igual”. Ressaltava ainda que o direito não distinguia as condições individuais de cada pessoa, se é casado ou não, se tem filhos ou não. Daí ele dizer que cada um tem necessidades e possibilidades distintas.
Por esse ângulo, a teoria de Marx não tem nada a ver com o Direito do Trabalho, uma vez que ele se referia ao próprio comunismo. Pode-se mencionar o fato de que o Direito do Trabalho, tal qual existe hoje, disciplinado e com respaldo teórico, é bem posterior à época de Marx, quando prevalecia o Direito Civil, que igualava os contratantes deixando os operários em grande desvantagem. Sim, tudo isso pode ser considerado, Marx, contudo, nunca defendeu um direito especial dirigido apenas aos operários. Ele mencionava a desigualdade referindo-se a toda a humanidade, a todo o direito. Nesse caso, o seu discurso só estaria afinado com o do Direito do Trabalho se este fosse o único ramo do direito em todo o planeta.
No comunismo, a desigualdade aceita era a natural e biológica, própria da humanidade, e não a que opõe operários e patrões. Sendo assim, deve-se descartar qualquer possibilidade de apreender o Direito do Trabalho dentro de algum princípio marxista. O Direito do Trabalho pode buscar justiça, e o faz em muitos momentos, mas mantendo a relação de assalariamento. Se fosse possível acabar totalmente com a subordinação na relação do trabalho, o Direito do Trabalho, nos moldes que o entendemos, pereceria. Marx tinha como maior preocupação a relação de exploração econômica, e é possível dizer que o Direito do Trabalho, a surgir, surgiu identificou-se contra a exploração selvagem do capitalismo, causador de fome e miséria. Mas o Direito do Trabalho vai além, sendo exigido ainda que o grau de exploração econômica seja reduzido, desde que o trabalhador sofra a dominação e a subordinação jurídica. A questão econômica é fundamental, mas não exclusiva do Direito do Trabalho. Diferentemente do que pensam os marxistas ortodoxos, o direito não acaba com o fim do capitalismo, e o Direito do Trabalho pode ultrapassar o próprio capitalismo, existindo mesmo dentro de um sistema socialista[63].
Embora o Direito do Trabalho possua princípios de defesa do trabalhador que podem coincidir com o discurso de esquerda, aquele vai além deste, pelo ângulo ora examinado. Por outro lado, o Direito do Trabalho não tem por objeto fazer com que os trabalhadores subordinem o empregador, ou seja, ele não existe para inverter uma correlação de forças, como se fosse um direito revolucionário. Isso porque o Direito do Trabalho não é uma via alternativa, podendo, quando muito, ser reformista, atenuando a dor dos mais explorados, melhorando o valor dos salários ou as condições de trabalho e de dominação, além de garantir os benefícios dos segmentos de trabalhadores mais estruturados. A via reformista acaba por ser mais realista, todavia também é limitada e se processa gradualmente sem maiores confrontos, podendo ser assumida por setores politicamente distintos. Nesse sentido, o Direito do Trabalho tem pouca valia para os que pregam mudanças imediatas profundas.
Não à toa, até o Estado Novo (1937–1946) o movimento comunista brasileiro não nutria nenhum interesse pelo Direito do Trabalho, nem tampouco agia voltado para a via jurídica. Seu campo de atuação se restringia basicamente a sindicatos, jornais, greves e congressos, sempre buscando o caminho da revolta, da revolução, e não o da negociação coletiva. O golpe de 1930, após fechar o parlamento e proibir o Judiciário de julgar os atos do governo, incrementou a legislação sobre as relações de trabalho e a Previdência Social. Mas foi só após o segundo golpe de Getúlio Vargas, em 1937, que se apresentou, de forma definitiva, o conjunto de leis que disciplinaria a Legislação do Trabalho, a Justiça do Trabalho (1939) e a estrutura sindical relacionada diretamente com o Estado (1939) — tudo expresso e simbolizado posteriormente na CLT de 1943. Em 1937 criou-se também o primeiro estatuto dos funcionários públicos, separando-se o regime dos servidores e fragmentando-se o entendimento dos republicanos positivistas comteanos de que deveria haver isonomia entre todos os trabalhadores. Não há nenhum sinal de que os partidos comunistas ou anarquistas tivessem interesse em defender o Direito do Trabalho.
Ao longo da primeira redemocratização no Brasil, iniciada em 1946, já no pós-guerra, houve poucas mudanças na legislação do trabalho. A esquerda, representada principalmente pelo PCB, apoiou, com um discurso nacionalista em prol da revolução burguesa (etapista), muitos projetos de Vargas, como a criação da Petrobras. Durante o governo de João Goulart, o PCB apoiaria as reformas de base, entre as quais a de maior peso era a reforma agrária, que acabaria sendo usada como gatilho para o advento do golpe militar de 1964.
Já a década de 1960 foi fundamental para a formatação do Estado e do regime de trabalho no Brasil, pois a ditadura militar promoveria, evidentemente com forte dose de autoritarismo, todas as reformas desejadas. E grande parte dessas mudanças continuou em vigor após a redemocratização dos anos 1980: a Reforma Administrativa, com o Decreto-lei n.o 200, de 1967; a Reforma Tributária, com o CNT (Código Nacional Tributário); a Reforma Previdenciária; e a Reforma Trabalhista, as três últimas em 1966. Existe forte tendência em nossa literatura de afirmar que ainda vivemos na “era Vargas”, mas talvez isso se deva ao fato de existirem poucos estudos sobre a época do regime militar.
A Reforma Previdenciária/Trabalhista unificou a Previdência Social, acabando com o sistema previdenciário corporativista estruturado por ocupações profissionais pelos institutos de aposentadoria e pensão. A consequência foi possibilitar o fim da estabilidade decenal e implementar a rotatividade da mão de obra, já que o trabalhador agora teria assistência previdenciária mesmo que mudasse de categoria. O contrato de experiência, criado em 1967 pelo Decreto n.o 229, diferentemente de outros contratos a prazo, não precisava de justificativa para a sua realização. O trabalho temporário, mais ousado, só viria com a Lei n.o 6.019, de 1974.
Com a ditadura, a política governamental de aplicação dos fundos de pensão e aposentadoria dos IAP (Institutos de Aposentaria e Pensões) em habitações populares foi substituída pela sofisticada política estabelecida pelo SFH (Sistema Financeiro de Habitação). Por esse sistema, a classe média, que vivia basicamente de aluguel, pôde começar a realizar o sonho da casa própria pagando prestações ao longo de 15 anos. Em 1964 seria instituído ainda o primeiro índice para medir a inflação, a ORTN (Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional).
O FGTS, que é um salário diferido e também uma poupança forçada, serviu ao sistema bancário e à construção civil, dois setores econômicos que cresceram intensamente no período. Assim, a oferta de emprego aumentou durante o “milagre econômico”, abrigando a classe média na carreira de bancário e a de migrantes mais humildes na construção civil. No primeiro caso, estabelecia-se um contrato de carreira; no segundo, um de curto prazo. Paralelamente ao surgimento de novos prédios, residenciais ou empresariais, foram se disseminando as favelas e os bairros da periferia.
Se o desconto previdenciário já vinha sendo aplicado desde a década de 1930, seria, porém, nos anos 1960, com a criação do INPS (Instituto Nacional de Previdência Social), que os descontos passariam a atingir todos os trabalhadores urbanos, e não apenas os filiados aos IAP. O mesmo ocorreria com o IRPF (Imposto de Renda da Pessoa Física), que já existia em lei[64], mas, com o CTN (Código Tributário Nacional), criado em 1966, passou efetivamente a ser cobrado. No ano seguinte fixou-se o desconto em folha para pagamento do SFH de longo prazo.
Na década de 1970 se regulamentariam as fundações de previdência fechadas nas grandes empresas com descontos paralelos aos do INPS, que possibilitavam conferir complementação de aposentadoria objetivando manter para o aposentado o mesmo padrão remuneratório da ativa. No âmbito sindical, o projeto da ditadura foi o de aumento da representação dos sindicatos tendo em vista a negociação coletiva, sem muita preocupação com o aperfeiçoamento do profissionalismo[65]. Com a alteração do art. 612 da CLT, os sindicatos deixaram de representar apenas seus sócios nas negociações coletivas, para representar todos os membros da categoria. Se os sindicatos sofreram forte intervenção jurídica e política durante o regime militar, por outro lado a sua representação institucional foi ampliada, e o imposto sindical, mantido[66]. A Lei n.o 4.923, de 1965, permitiu a flexibilização de reduções salariais por meio de negociação coletiva. Na época, os sindicatos lutaram contra o “arrocho salarial”, mas de forma tímida, com duas greves isoladas em Betim (MG) e Osasco (SP).
A partir da fundação de novas estatais como extensão das já existentes, caso da Petrobras, expandiu-se o segmento intermediário de trabalhadores (gerentes e executivos, entre outros) com altos salários. A administração pública fomentou, de um modo geral, a classe de servidores públicos e deu início à terceirização no âmbito público. Nos anos que se seguiram foram instituídos o seguro-desemprego e o vale-transporte, por meio de leis especiais. O vale-alimentação seria implantado principalmente por iniciativa da PAT (Lei do Programa de Alimentação do Trabalhador) e, embora não obrigatório, começou a ser utilizado amplamente pelas empresas quando foram disseminados os tíquetes de refeição, ajudando a desenvolver o comércio de alimentos prontos e reduzindo os problemas com o fornecimento de alimentos em refeitórios nas empresas. Os salários deixaram, majoritariamente, de ser pagos em espécie ou cheque, o que causava longas filas nas empresas e nos bancos, em favor da conta salário, tendo os bancos se beneficiado com esse capital. O crédito bancário cresceu ainda mais nessa época.
A década de 1980 teve início no Brasil em um cenário de recessão econômica e em meio à primeira crise do INPS. Para muitos economistas liberais, foi “a década perdida”. Cresceu o peso dos sindicatos nas negociações coletivas contra a perda inflacionária dos salários. A greve do ABC do final dos anos 1970 foi emblemática, com notícias relacionadas ao movimento sindical sendo repetidas nos órgãos de comunicação. Os sindicatos chegaram à mídia e, com isso, alguns líderes sindicais e alguns advogados trabalhistas se tornaram famosos, o que era inédito.
A inflação continuava corroendo os salários, promovendo elevados reajustes nos aluguéis e nas prestações dos mutuários. O Brasil teve que se render ao FMI (Fundo Monetário Internacional) e pedir dinheiro emprestado. A “repartição do bolo”, ou seja, a distribuição da riqueza produzida no país, prometida pela ditadura, não ocorreu. Nesse cenário, as discussões econômicas se popularizaram, gerando uma espécie de “economização” da política (fenômeno que se repete hoje com a judicialização) e o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) ganhou status de órgão pesquisador com credibilidade.
Com o Plano Cruzado em 1986, o primeiro dos vários planos governamentais, a inflação foi contida provisoriamente por meio de decreto, com enorme prejuízo para o valor dos salários. E o padrão se repetiria nos planos seguintes: congelamento de preços no mercado com os valores no pico e congelamento de salários sem reajuste diante das perdas inflacionárias passadas. Eventualmente eram concedidos abonos como uma espécie de compensação, mas sem a reparação do dano. Assim, as denominadas “perdas salariais” seriam com frequência tema de negociação, de dissídios coletivos e de greves.
A Justiça do Trabalho recebeu infindáveis ações movidas por sindicatos como substitutos processuais, o que, por consequência, gerou elevadas condenações às empresas, ainda que fosse de pouca monta o que cada trabalhador recebia. Esse quadro também facilitou negociações diretas entre empresas e sindicatos, fosse parcelando dívidas, fosse liberando reajustes fora da data-base para compensar perdas decorrentes da inflação.
A força dos sindicatos e a força do poder normativo da Justiça do Trabalho provavelmente nunca foram tão grandes, a ponto de, no início dos anos 1990, desenvolver-se a tendência no TST de se evitarem dissídios coletivos e ações de cumprimento[67].
A Constituição de 1988 avançou na consolidação dos direitos sindicais, mas o Direito do Trabalho individual não sofreu alteração substancial. No campo sindical, vedou-se a interferência do Estado nos sindicatos — fato inédito no país —, acabando definitivamente com a chamada “função pública delegada” que lhes era atribuída. Dessa forma, as entidades deixaram de sofrer intervenções por parte do Ministério do Trabalho. Hoje essa medida pode parecer pouco relevante, mas, na época, era esse o órgão estatal com competência (mérito administrativo) para apreciar todas as questões relacionadas a sindicatos. Ao Judiciário cabia apenas anular os excessos, diferentemente do que ocorreria depois, quando passou a apreciar o mérito dos litígios, desde que provocado por quem se sentisse prejudicado[68].
A Constituição tornou obrigatória a presença de representantes dos sindicatos nas negociações coletivas, proibindo-se a negociação com grupos de empregados. Além disso, assegurou-se a participação de trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos quando seus interesses profissionais ou previdenciários fossem objeto de discussão e deliberação. Foi criada ainda a possibilidade de fixação de contribuições por meio de assembleia de empregados, tema que provocou intensa controvérsia. O direito de greve foi permitido amplamente, como nunca visto. Outros direitos foram apenas reafirmados ou elevados ao nível constitucional, como o reconhecimento dos contratos coletivos e, por meio deles, a possibilidade de flexibilização do valor dos salários; a estabilidade dos dirigentes sindicais no emprego; a representação sindical coletiva e individual de cada categoria e não só de sócios.
Já em relação aos direitos individuais dos trabalhadores, se houve ou não avanço significativo com a Constituição de 1988, essa é uma questão controversa. Em nome da estabilidade, elevou-se a indenização de 10% para 40% do valor do FGTS em caso de dispensa arbitrária. O recolhimento referente ao FGTS passou a ser obrigatório a todos os trabalhadores, confirmando o que já era uma realidade. Os direitos mais relevantes obtidos pela grande massa de trabalhadores foram o aumento do percentual da hora extra de 20% para 50% e a redução da jornada semanal de 48 horas para 44. Criou-se também o inesperado pagamento de 1/3 sobre as férias.
Houve avanço em direitos setoriais de trabalhadores, como a equiparação dos avulsos aos demais trabalhadores e o aumento de direitos dos trabalhadores domésticos, além da decretação do fim da discriminação em relação ao trabalho da mulher. Talvez a maior novidade da Constituição nesse campo tenha sido a estabilidade da gestante no emprego. Quanto às regras sobre o salário mínimo, é difícil avaliar se foram positivas ou negativas para o trabalhador. O art. 7º da Carta passou a ser uma espécie de “mínimo possível de direitos”, embora o salário-família tenha minguado por meio de emenda constitucional. Tanto é que a Reforma Trabalhista de 2017 não pôde mexer em tais direitos, nem mesmo por meio de flexibilização (art. 611-B da CLT).
A possibilidade de maior participação dos trabalhadores nos lucros, ou mesmo na administração das empresas, parecia seguir um processo natural. A Constituição firmou que a participação nos lucros não era salário. Em sua gestão, FHC investiu no tema como alternativa de aumento do poder de compra do empregado por meio de negociação coletiva, mas sem o resultado esperado. O seu governo, porém, obteve sucesso com a Reforma Administrativa implementada pelo ministro Bresser Pereira, conhecida como sendo a do “público não estatal”, a fim de incentivar a criação de ONGs.
A ideia era que essas organizações não governamentais pudessem aumentar a prestação dos serviços públicos para evitar o inchaço da máquina estatal com novos órgãos e novos funcionários, sendo, inclusive, regulamentado o trabalho voluntário. Essa iniciativa legal do governo FHC no âmbito econômico acompanhou o que já ocorria no setor privado por meio de incentivo de parcerias, fragmentação das empresas, intensificação da terceirização, incentivo a franquias etc., ainda que se tenham intensificado o empreendedorismo e a criação de pequenas empresas. A linha divisória entre público e privado ficou mais tênue, mesmo com o patrimonialismo permanecendo como uma realidade nefasta.
A Constituição de 1988 manteve o direito à propriedade privada, mas estabeleceu que esta atendesse à função social. Já o Código de 1916, ainda em vigor na década de 1980, assegurava ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens sem limites, exceto em relação ao direito de vizinhança e ao de obras públicas, numa época em que as leis de proteção ambiental eram incipientes. A norma de 1988, contudo, é ampla e dá margem ao juiz para impedir empreendimentos privados danosos à sociedade. Assim, a propriedade privada deixou de ser absoluta como no tempo de Marx, conforme ressaltado. Quanto aos direitos difusos e os direitos coletivos, estes passaram a ser regulados legalmente. É o caso da preservação do meio ambiente, da fauna e da flora, e dos direitos do consumidor, dos idosos, das pessoas com deficiência, da mulher, dos negros etc[69].
Já o lamentável quadro das ações trabalhistas individuais só seria alterado na década de 1990. O trabalhador tinha de provar perante o juiz praticamente tudo o que dizia, pois não havia inversão do ônus da prova a seu favor. A hora extra precisava ser comprovada pelo reclamante, o que independia de a empresa apresentar controles de frequência, diversamente do que passou a acontecer à luz da Súmula n.o 338 do TST de 2003, que inverteu o ônus da prova. Não se admitiam decisões liminares, a não ser no caso previsto na CLT: o de transferência de local de trabalho do empregado. Não havia condenação de indenização por dano moral. A indenização por dano de acidente de trabalho era julgada na justiça comum.
As execuções eram baixas. O reclamante era obrigado a executar primeiro o valor principal, para só depois, numa segunda execução, cobrar os juros e a correção monetária. Numa realidade inflacionária, o valor do principal era ínfimo, o que, por vezes, levava o próprio empregado a se dirigir ao balcão de atendimento da junta, pedir uma guia de depósito, como se fosse o devedor, e pagar a ele mesmo, para poder dar andamento aos processos. Alguns juízes nem aceitavam essa prática.
As audiências usualmente eram fracionadas, com distanciamento de meses entre uma e outra, e muitos trabalhadores acabavam fechando acordos de valores baixos para encerrar logo o processo. Raros juízes oficiavam a bancos diretamente para penhora de dinheiro, e, quando estes eram de outra comarca, expediam carta precatória para que o juiz local expedisse mandado. A lei processual do trabalho, contida na CLT, era mais antiga que o Código de Processo Civil de 1973. O reclamante não podia, por exemplo, adjudicar diretamente um bem penhorado; era preciso esperar um licitante.
Vantagem para o empregador era o fato de não haver retenção de previdência nem de imposto de renda na Justiça do Trabalho. Mas havia também riscos para ele, pois as citações via postal nem sempre eram confirmadas, causando um grande número de revelia.
Não que todos esses problemas tenham sido superados, mas é certo que o processo do trabalho passou a ser bem mais eficiente, muito embora em grande parte mais em decorrência das inovações tecnológicas do que das várias alterações de leis processuais.
Na década de 1990 aumentaram as opções da esquerda por meio da via jurídica, agora efetivadas através das ações judiciais. As teorias de acesso à justiça como forma de incentivo à cidadania e de elevação de direitos coletivos foram amplamente divulgadas e marcaram a geração jurídica do final do século XX. As ondas de efetividade judicial de Mauro Cappelletti e Bryant Garth expostas no livro Acesso à Justiça foram fartamente aceitas no Brasil, quando aqui publicado, em 1988. Todos buscaram novas formas de efetividade da justiça pelo campo processual.
Na segunda metade dos anos 1990, a Justiça do Trabalho chegou a sofrer a ameaça de ser extinta, com um projeto de lei do deputado Aloysio Nunes e a abertura da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) do Judiciário. Mas, com a reforma instituída pela Emenda Constitucional n.o 45, de 2004, a Justiça do Trabalho se fortaleceu devido à ampliação de sua competência jurisdicional. Refiro-me a ações individuais, pois os dissídios coletivos de natureza econômica foram restringidos.
Essa mudança foi tornando a Justiça do Trabalho mais individualista e condenatória, aproximando-se das demais justiças, conforme já analisado. O elo que havia entre a Justiça do Trabalho, os sindicatos e os trabalhadores da ativa enfraqueceu-se, abrindo-se um enorme portal para a entrada de ações individuais e de ações coletivas que se transformariam em individuais na execução (substituição processual dos sindicatos ou do MPT). Cresceu o número de ajuizamento de ações, sob o incentivo da teoria do acesso à justiça pelos próprios tribunais, que passaram a divulgar em seus sites acordos ou condenações de valores elevados, como se procurassem atrair clientela. Por vezes destacavam-se dados e decisões isolados que não representavam o padrão habitual dos julgamentos, criando falsas expectativas. Se o estatuto dos advogados não permite que eles façam propaganda de si próprios, os tribunais passaram a fazer para eles[70].
No âmbito mais geral, a luta contra a precarização do trabalho expandiu-se, decorrente do advento da terceirização e da flexibilização. Nos discursos da esquerda o protagonismo dos operários foi substituído pelo dos precarizados (ou precariados), a partir de grande esforço teórico para recompor os atores da luta de classes. Tratava-se de demandas relacionadas a novos postulados, provenientes principalmente do direito constitucional, como a defesa da dignidade humana e o combate a qualquer tipo de discriminação. Em outras palavras, eram temas gerais de cidadania levados para o seio do Direito do Trabalho, nem sempre com a mesma reciprocidade em outros ramos do direito. O que significa dizer que o fato de ser trabalhador não tem gerado novas vantagens no âmbito social, isto é, fora do próprio Direito do Trabalho[71]. Aliás, o fato de o trabalhador estar contratado pode excluí-lo de benefícios concedidos pelo Estado ao necessitado, caso das bolsas, o que resulta de uma lógica jurídica, mas não deixa de ser um desincentivo para os que procuram emprego.
As análises e as lutas em torno do salário, temas que unificavam a classe trabalhadora, praticamente deixaram de existir. Não dá para dizer que a luta salarial é mais importante que a luta contra a precarização, mas é certo que a primeira confronta diretamente o capital por atingir o lucro, enquanto a segunda é mais individualizada, inclusive entre os empregados de uma mesma empresa: a insalubridade para um, o assédio para outro, o acúmulo de trabalho para um terceiro.
As condições de trabalho não podem ser quantificadas por números, mas avaliá-las é essencial. Nessa perspectiva, muitas vezes o salário passa a ser apenas um de seus aspectos, por vezes até secundário, já que diz respeito mais às condições de vida fora do trabalho. Pode-se dizer que a luta contra a precarização é mais facilmente relativizada e mais difícil de ser quantificada numericamente em termos de ganhos, diferentemente da luta por aumento salarial. Mesmo em empresas que fornecem boas condições de trabalho, como bancos e estatais, há demandas contra, por exemplo, assédio moral, alimentação ruim, uso intenso de instrumentos de trabalho informatizados etc.
A luta concentrada em aumento de salários é mais objetiva, ainda que corra o risco de se tornar economicista ou imediatista, caso do acréscimo salarial que rapidamente perde seu poder de compra. Porém, de modo geral, ela é mais propícia à unificação entre os assalariados, como já dito. No emprego estável é mais propícia a luta por melhorias nas condições de trabalho. Já nos contratos curtos, os ganhos obtidos com essas lutas acabam ficando para as próximas levas de trabalhadores, e o trabalhador comumente está mais preocupado em pôr com urgência comida na mesa. Paradoxalmente, nesses últimos empregos é mais difícil o trabalhador se organizar, conforme acontece no ambiente dos terceirizados e dos temporários. Revoltas, nesses casos, levam, invariavelmente, a demissões e não a negociações.
O sonho do sindicalismo nos anos 1980 era a unificação da data-base de todas as categorias, o que facilitaria a convocação de uma greve geral, se necessário. Mas isso nunca foi efetivamente alcançado no período pós-ditadura. Se nas décadas de 1980 e 90, com a inflação em alta e a implantação de planos econômicos diversos, as perdas salariais eram primordialmente o que motivava a existência do movimento sindical e da Justiça do Trabalho, que respondia com dissídios coletivos de natureza econômica, no século XXI os sindicatos passaram a negociar seus reajustes sob baixa inflação. Nesse caso, os percentuais pactuados não chamam mais tanto a atenção.
Pode até ser que as conquistas mais recentes tenham efetivamente aumentado bem mais o poder do salário do que as conquistas antigas, considerando a quase inexistente inflação nos dias de hoje. Porém, não resta dúvida de que não há como expressar em termos de mídia que 3% correspondem a um ganho maior que 30%, o que contraria o senso comum. O que está na superfície aparece bem mais do que o que está na raiz.
Por esses fatores, a histórica luta por aumentos salariais foi embaçada pela luta contra a precarização do trabalho. Com o passar do tempo, as preocupações mais contemporâneas, como as de cidadania, a par de seus efeitos nas mídias e redes sociais, envolvendo propaganda e denúncias, foram priorizadas na pauta dos debates. Observo, contudo, que tanto a luta salarial quanto a focada na precarização não combatem diretamente o desemprego. As conquistas por aumento de salário só perduram se houver uma corporação profissional brigando por sua manutenção, não deixando que o salário seja desvalorizado no mercado, tema do qual trataremos adiante.
Além da luta por aumento salarial e por melhoria das condições de trabalho, há a luta pelo profissionalismo, negligenciada em muitos setores e dependente da existência de um grupo profissional que a defenda. O fim do imposto sindical, decretado pela Reforma Trabalhista de 2017, incentivou projetos saudosistas de retorno do imposto, mas sem a contrapartida das propostas de fortalecimento da sindicalização. Para isso seria preciso reavaliar a formatação dos sindicatos, que, atualmente, representam todos os membros da categoria e não apenas os sócios. É importante que os sindicatos procurem expandir o profissionalismo de seus filiados, inclusive como forma de valorizar sua força de trabalho, cuja consequência natural é a melhoria das condições de trabalho e o aumento salarial.
Além de servirem de canal de negociação coletiva e de ponte para a atuação em comissões governamentais, os sindicatos poderiam visar também à construção da expertise profissional e ética. O seu papel e o dos conselhos profissionais deveriam ser reavaliados. Hoje há excesso de concessão de habilitação profissional em alguns órgãos de classe, enquanto em outros não há nenhum controle sobre a atuação dos profissionais. Houve mesmo retrocesso em certos casos, como o dos jornalistas, após a decisão do STF[72] de liberar para qualquer pessoa o exercício da profissão. Na prática, quem ganhou foi a liberdade de expressão dos empregadores, em detrimento da ética do trabalhador profissional. Os próprios grupos profissionais deveriam reformar a estrutura sindical atendendo às próprias demandas específicas.
Uma profissão que pode pôr em risco a vida do cidadão é a dos rodoviários. Em 2012, a Lei n.o 12.619 dispôs “sobre o exercício da profissão de motorista”. Muito se discutiu sobre essa lei, que tratou de regras trabalhistas e de trânsito, criando obrigações e suprimindo direitos, mas nenhum de seus itens buscou organizar os profissionais em um órgão ético e de autocontrole. Entre outros temas, a lei suprimiu o entendimento do TST de que o intervalo do rodoviário não poderia ser eliminado nem fracionado por se tratar de um direito indisponível (antiga Orientação Jurisprudencial n.o 342, de 2004).
Nas últimas décadas foram produzidas dezenas de leis com o objetivo de “regulamentar profissões”. Todavia, em geral, elas servem fundamentalmente para que o trabalhador passe a contribuir, obrigatoriamente, com a Previdência Social. Ou então são pequenas leis que definem a profissão e remetem o tema para a regulamentação administrativa, nas quais se enquadram, por exemplo, artesãos, instrutores de trânsito, sommeliers, enólogos, secretários, designers, cabeleireiros, esteticistas. Outras leis criadas nas últimas décadas visam permitir, sobretudo, o próprio exercício da profissão, caso da lei dos mototaxistas. E há as que procuram fechar o mercado com credenciamento, como a dos guias de turismo, geralmente por reivindicação de associações ou de cursos técnicos. No caso da Lei do Vaqueiro, de 2013, o único direito concedido, de seguro de vida e de acidente, foi vetado pelo presidente da República. A Lei n.o 12.023, de 2009, do avulso urbano, que abrange trabalhadores conhecidos como chapas, fez ressurgir o antigo closed shop, passando o sindicato a ter a função de administrar o contrato de trabalho, o que, até 1993, era praticado pelos trabalhadores da estiva portuária.
Nenhuma dessas leis, no entanto, tratou da possibilidade de autorregulamentação ética e de autocontrole dos profissionais, como ocorre com os conselhos profissionais no Brasil. É que tais possibilidades reduzem o poder de subordinação do empregador, além de eventualmente aumentarem despesas.
Também se intensificaram as reivindicações por meio de projetos de lei e por ações judiciais que permitem aos juízes se manifestarem mais abertamente, através do ativismo judicial. É indiscutível o peso que o STF passou a exercer sobre temas importantes, mas não definidos pelo parlamento, inclusive por meio de interpretação extensiva da Constituição Federal.



6. FUNÇÃO AMPLIADA DO SALÁRIO E REPASSE DA MAIS-VALIA

A delimitação do que é direito do trabalhador já não é tão simples quanto na época de Marx. Não só a propriedade privada foi “socializada”[73], como também o salário deixou de ser somente do trabalhador.
O salário, que é o que motiva o trabalho remunerado, embora não tenha tido seu valor aumentado de modo expressivo para a grande massa de trabalhadores, sofreu importante mudança em seu significado social. A análise que faço aqui não se limita à técnica jurídica. Desde a década de 1960 o salário no Brasil deixou de ter unicamente a função de contraprestação. Muitas reformas legais foram calcadas na contraprestação do trabalho dos contratados e dos estatuários e, em alguns casos, dos autônomos. Nessa contraprestação do trabalho incluem-se, além de certa quantidade de dinheiro, tudo o que o trabalhador recebe por seu trabalho, a título de abono ou prêmio, com natureza indenizatória ou não; pago para gasto no trabalho ou fora dele; pago pelas mãos do tomador ou por meio de terceiros; pago de imediato ou diferido, como o FGTS.
O não-trabalho já podia ser pago com as férias e o repouso semanal remunerado, o que representaria um modo de pagar a contraprestação de forma não imediata, e sim condicionada ao fato de o empregado ter trabalhado integralmente o ano inteiro ou a semana inteira. Uma novidade é um determinado pagamento salarial poder ser quitado com “folga descanso”, benefício concedido em geral apenas ao empregado bem remunerado. O cumprimento de meta mensal ou anual alonga a obrigação do trabalhador, aumentando a intensidade do seu trabalho, sendo mais difícil de medir do que pela computação de horas e minutos.
O teletrabalho permite mobilidade ao trabalhador e ao empregador, perdendo um pouco do “chão de fábrica”. Assim, o salário e o trabalho vão se tornando cada vez mais difusos na sociedade, sem que o seu proprietário ou beneficiário tenham total domínio sobre eles. Com o nível de fragmentação dos empreendimentos em termos de tamanho, bens e duração, há uma nova movimentação do capital no mercado de trabalho. Talvez seja heresia dizer que o salário vem se transformando em capital, mas a verdade é que o distanciamento entre ambos já não é tão nítido e conflitivo como no passado.
De acordo com a teoria marxista, o empregador fica com a maior parte do resultado da produção (mais-valia), enquanto o empregado recebe o mínimo, vale dizer, o salário, para sua sobrevivência e reprodução. O salário, contudo, passou a ser um eixo muito mais importante para a manutenção do mercado e do Estado do que antes. Embora diversos sociólogos e filósofos tenham destacado a descentralização do trabalho no mundo contemporâneo, os salários continuam a ser tão essenciais quanto o capital, sendo que, em alguns momentos, podem até se confundir.
Para haver capital é necessário haver mais-valia, e esta depende do salário. O próprio capital se fragmentou entre enormes, médios e pequenos empreendimentos, intensificando a concorrência não só no âmbito do mercado, por meio de eficiência e credibilidade, mas também por conta do nível de influência junto à máquina estatal, sobretudo em relação a seus fundos de investimento e bancos de desenvolvimento. Tal influência contribui ainda, sem dúvida, para um maior acesso a isenções tributárias, obtenção de legislações de proteção e decisões judiciais.
O capital e o salário circulam sem fronteiras, formal ou informalmente. O imposto de renda retira para o Estado uma parte do salário formal, que, em tese, não é a mais-valia, mas funciona como capital para investimento em obras e serviços. E não só: serve também para pagar os salários dos servidores públicos, que, no Brasil, consomem mais da metade da receita pública. Marx chamaria esses trabalhadores de improdutivos por não gerarem mais-valia, ainda que atualmente não haja dúvida de que o próprio Estado explora mais-valia de seus servidores.
Se o que fundamenta a teoria da mais-valia criada por Adam Smith e desenvolvida por Marx ainda é válida, temos de partir para uma análise mais profunda do seu repasse, o que se verifica quando a mais-valia não fica inteiramente com o empregador. Esse repasse se dá, por exemplo, quando o fabricante vende o produto por atacado (com preço mais baixo do que por unidade) ao comerciante, que, ao revendê-lo por um preço mais alto, fica com uma parcela da mais-valia[74]. Hoje é fácil imaginar que a mais-valia é repassada globalmente para o mercado.
A circulação do dinheiro (na verdade, o seu valor crédito, já que a movimentação de cédulas reduziu substancialmente) não gera mais-valia apenas numa direção, de mercadoria – dinheiro – mercadoria (M–D–M) para dinheiro – mercadoria – dinheiro acrescido de mais-valia (D–M–D’) para o bolso do burguês tradicional, mas sim em diversas direções. Até mesmo na direção dos altos salários, dos altos vencimentos e das altas aposentadorias/pensões; e ainda na direção da renda da enorme quantidade de autônomos ou profissionais liberais, independentemente de estes receberem valores altos ou baixos. Trabalhadores precários também podem receber o repasse da mais-valia, assim como o trabalhador doméstico, que não gera mais-valia, mas pode ser pago com parte do alto salário/renda de seu empregador.
Se a empregada doméstica cuida do filho da patroa para que esta possa trabalhar e receber seu salário, tal salário serve também para pagar a própria empregada doméstica. Podemos então concluir que a trabalhadora doméstica se situa na posição de colaboradora indireta da produção da mais-valia. E o empregador da patroa, ao lhe pagar, pode deixar de reter uma parte da mais-valia que se destina, em última instância, a pagar a empregada doméstica. Isso quando o empresário, para manter como sua empregada a patroa da empregada doméstica, tem que aumentar seu salário. Algumas empresas fornecem auxílio-creche, o que consta de certas convenções coletivas a fim de regulamentar e atenuar justamente esse aspecto da mais-valia.
Em sua maioria, os atuais empregadores de trabalhadores domésticos não são mais aqueles patrões caricaturais que gastavam rios de dinheiro com hóspedes ociosos e serviçais improdutivos, que não produziam mais-valia, que Adam Smith tanto desprezava. Para Smith (1984, p. 209), “um homem que emprega manufatores enriquece, um homem que mantém muitos criados empobrece”.
Vejamos também o caso do trabalho voluntário, regulamentado por lei e previsto para ser prestado por entidades sem fins lucrativos, como ONGs, e os mutirões realizados pelos próprios beneficiários com materiais fornecidos pelo Estado. Quando se trabalha gratuitamente há mais-valia? Nesses casos a mais-valia pode equivaler a zero ou a 100%, ou seja, não existe salário ou ele simplesmente não é pago. Todavia, o que aqui interessa apontar é que mesmo o trabalho gratuito pode estar sujeito à mais-valia, desde que o tomador lucre com o seu resultado. E, nesse caso, a taxa da mais-valia é de 100%, havendo grande margem para o seu repasse.
No Brasil, o Estado começou a lucrar quando, na década de 1950, percebeu que os recursos oriundos dos institutos de aposentaria e pensões criados havia menos de duas décadas representavam um capital acumulado sem gerar lucro, só tendo despesa com aposentadorias e pensões. A partir de então, além da concessão dos benefícios, passou a investir esse capital em construção de habitações populares, lucrando sob a justificativa de atacar o déficit habitacional. Portanto, o Estado pode investir e lucrar, ainda que não tenha “finalidade de lucro”, o que ocorre com ONGs, cooperativas, fundações, associações etc.
Esse projeto da década de 1950 foi tão bem-sucedido que, em 1966, a Previdência foi unificada e se fundou o sistema FGTS/BNH (Banco Nacional de Habitação), especificamente para avançar nesse sentido, em detrimento da própria Previdência, que, na década de 1980, exporia sua primeira grande crise de caixa. Entendo que, até certo tempo, houve “desvio” de recursos que normalmente iriam para a Previdência Social em prol do FGTS: embora tecnicamente o recolhimento ao fundo não seja um desconto formal do salário do empregado, e sim pago pelo empregador, seu valor econômico também pode ser considerado salário diferido, pois o empregado empresta compulsoriamente parte de seu salário para os bancos investirem sobre programas do governo.
Marx propunha a “abolição do sistema de trabalho assalariado”[75]. Entretanto, na sociedade contemporânea, a mera supressão formal do salário não seria suficiente para suprimir a mais-valia. Com o processo de automação das indústrias na década de 1970, muito se especulou sobre a permanência dos lucros sem a mesma quantidade de trabalhadores nas empresas. Esse quadro certamente contrasta com o do século XIX e o do início do século XX, quando a exploração do trabalho era intensa sobre a quantidade de horas trabalhadas e a quantidade de trabalhadores. Entretanto, essa redução de trabalhadores e de suas jornadas não significou redução de mais-valia. Marx chamou esse fenômeno de mais-valia relativa: a menor quantidade de jornada poderia produzir até mais com técnicas de produção. Mas ele não adentrou sobre os reflexos dessa mudança na composição da classe trabalhadora. O desenvolvimento da técnica exige empregados mais qualificados e salários mais altos, incrementando uma classe média de assalariados que não correspondia exatamente à pequena burguesia de profissionais liberais.
O fato é que no lugar de a pequena burguesia se proletarizar, a classe média cresceu. A pirâmide do setor produtivo já não tem uma base tão ampla, aproximando-se mais de um cone elegante. Mas até os desempregados e necessitados, quando recebem do Estado seguro-desemprego, bolsas, bônus, ou outro tipo de auxílio em dinheiro, não correspondentes a uma contraprestação, estão recebendo também uma parcela da mais-valia transportada pelo Estado. Assim, fica claro que o capital impregnou toda a sociedade, apesar de já não se distinguir de forma tão evidente a divisão de classes e a divisão entre superestrutura e infraestrutura, posto que o “inimigo” já não é identificado com o antigo burguês de cartola. Hoje esse burguês está, de certa forma, dentro de todos nós, encoberto por valores não só econômicos, mas de dominação também. A questão central ainda pode ser a da exploração econômica. O problema é que esta não será resolvida apenas com a introdução de mecanismos econômicos, mas também com a consciência de que o espectro desse burguês ronda todos nós.
Portanto, o antagonismo entre trabalho e capital hoje fica embaralhado com outros antagonismos. Existem ainda os terceiros interessados, que, ao participarem do jogo do mercado, podem se unir ao capital ou ao trabalho em certas circunstâncias. Há a possibilidade também de grupos ilícitos organizados e de grupos lícitos de elites serem encarados nesse cenário como inimigos tanto do capital quanto do trabalho, ainda que a justificativa nesse caso não se restrinja à questão econômica. Atividades antissociais de modo geral, que prejudicam a coletividade, podem gerar movimentos que não se enquadram na tradicional luta de classes. A correção para esses males depende, basicamente, da via política e da via jurídica, que, em certos momentos, se confundem ou se unem contra uma ordem econômica prejudicial à cidadania e ao interesse público.
Embora capital e trabalho preservem a contradição histórica — aquela em que o empregador quer pagar o menos possível ao empregado exigindo o mais possível de trabalho, ao passo que o empregado quer ganhar o mais possível trabalhando o menos possível —, já não é possível separá-los totalmente. As contradições visíveis são aquelas entre pobres e ricos, expressas quanto ao nível de acesso ao consumo, ao status social, à profissão, à subordinação jurídica e à hierarquia. Pelo ângulo econômico, prevalece a exploração do trabalho, mas, para além desta, existe a relação de dominação social, quando valores culturais são agregados aos econômicos.
É na subordinação jurídica existente nas relações de trabalho, legalizada e legitimada socialmente, que a exploração econômica e a dominação social melhor se encontram. A subordinação jurídica é uma condição própria do trabalho coletivizado, tal a necessidade prática de o trabalhador ficar à disposição do empreendimento, submetendo-se a regras disciplinares e a hierarquias. Esse aspecto da subordinação me parece universal e indelével. Já a dominação é uma condição social de dependência gerada onde há baixos salários, desemprego e precarização das condições de trabalho. Substancialmente, porém, surge na forma como o trabalho é comandado e organizado, seja com alto grau de alienação, sob ameaças, com punições ou outros excessos. O grau de dominação e de exploração do trabalho não é igual para o conjunto dos trabalhadores, muito embora a legislação do trabalho, simbolizada no país pela CLT, trate os empregados como se todos fossem iguais. Um adiantamento salarial de 20% pode ser encarado pelo empregado como uma bondade do empregador, mesmo quando ele já trabalhou mais da metade do mês. O empregador que assina a carteira de trabalho é visto como bom empregador, todavia ele está simplesmente cumprindo sua obrigação num país em que a fraude é generalizada.
Também existe a dominação coletiva. Os contratos de trabalho são independentes entre si. Quando um empregado demitido não é contratado por outra empresa porque o antigo empregador ainda não deu baixa em sua carteira, há aí uma forma de dominação tácita, revelando costumes arraigados que ultrapassam a exploração econômica. A dominação é transmitida por prepostos do empregador, que também são empregados percebendo ou não elevados salários. Existe, assim, um repasse de dominação. O empregador pode residir em outro país e nunca ter visto um empregado seu, mesmo assim pode ocorrer um alto grau de exploração econômica, com concentração de renda, mas a dominação pode ser até mais flexível nesse caso, pois pode ser socializada mais facilmente que o capital.
Essa dominação não está relacionada à mais-valia, e sim a mecanismos culturais e jurídicos. A exploração econômica influi, mas não determina necessariamente a dominação. E a dominação também não se limita ao que está “dentro do contrato”, pois reflete as relações sociais entre sexo, idade, cor, grau de formação profissional, carisma, afeto, assédio, solidariedade etc. A dominação ganha força quando o empregador é um eterno devedor e o trabalhador um eterno credor fraco, sem garantia e eficácia de seu crédito sem título exequível.
A legislação formal, uniforme para todos, sempre foi uma reivindicação liberal, contrária aos casuísmos legais que tanto prejudicam os contratos e o mercado. A legislação do trabalho surgiu rompendo historicamente com a lei formal e criando uma lei especial. Talvez deva ser considerada como primeira legislação especial consolidada do direito comercial, que visou disciplinar as relações entre comerciantes. A legislação do trabalho também contribuiu para isso, fixando regras iguais a serem aplicadas aos empregados a fim de evitar que um comerciante pagasse menos a seus empregados, obtendo um lucro maior que os outros. Antes da implantação do salário mínimo, na Idade Média, havia o salário máximo, o que implicava punição para o empregador que pagasse além do teto determinado. A limitação da jornada de trabalho e a fixação da idade mínima para a contratação também são normas gerais de concorrência entre empresas, sendo ainda, por outro lado, reivindicações operárias. Não se pode negar essa coincidência de interesses entre capital e trabalho.
A legislação do trabalho no Brasil tem funcionado como uma espécie de lei formal do trabalho, defendida atualmente pela esquerda brasileira. E, de forma paradoxal, foram os liberais que, nos últimos tempos, passaram a combater esse formalismo por meio da flexibilização. Tal contradição é mais política que jurídica, pois a pretendida flexibilização não confronta a lei, desde que esta autorize a sua prática. Na verdade, o que pretendem os liberais é a uniformização de uma legislação que comporte exceções por meio de negociação, posto que a principal regra do mercado é a negociação. Em outras palavras, o que os liberais pretendem é reduzir a imperatividade da lei em prol da lei meramente supletiva, conforme consta no Código Civil a respeito dos contratos.
A flexibilização nada mais é do que a tentativa de fazer prevalecer regras locais sobrepostas às gerais, mas por meio de negociação. É a “lei entre as partes”. Em tese, a flexibilização é o desiderato de qualquer sindicato de trabalhadores, já que seu objetivo é negociar regras locais para seus membros. Se a negociação leva a ganho ou perda, esse é um problema inerente a qualquer negociação, pois muitos podem ser os ângulos de interpretação.
A negociação também pode ser interpretada por um ângulo mais amplo. Os reflexos causados a terceiros interessados, como o Estado e outras coletividades, por conta de uma negociação não costumam ser prioritários para os negociadores. Os interesses coletivos podem conflitar também com o interesse público, e essa coletividade pode ser a de uma empresa (empregados e empregadores) com outra coletividade maior, o que ocorre, por exemplo, quando uma indústria polui o ambiente, destrói rios e vegetação. Não raramente os sindicatos se unem aos empregadores para defender seus interesses imediatos[76]. Nesse caso, a negociação coletiva sindical não é suficiente, sendo necessária a via legal e jurídica para dirimir o conflito.
A CLT tem o poder simbólico de legitimar as relações de trabalho enquanto regra uniforme, embora exista uma vasta gama de leis especiais (ou subespeciais) que tratam de direitos de categorias de trabalhadores e, mais recentemente, de proteção a pequenas empresas e ao empreendedorismo. Sem falar na divisão entre CLT e estatuto de servidores, pois só me detenho aqui no que hoje é considerado Direito do Trabalho. Existe ainda a divisão entre trabalhadores formais e informais, decorrente em geral de ilicitudes, motivo pelo que não a abordarei. Por fim, temos variados benefícios legais em certas categorias que, mesmo obtidos historicamente como conquistas, com o tempo podem ser considerados privilégios. A distinção entre conquista e privilégio nem sempre é objetiva e pode ser alterada com o tempo e as condições históricas. Muitas dessas diferenciações entre segmentos de trabalhadores podem ser consideradas normais, uma vez que a legislação não é uma camisa de força. Todavia, o que impressiona é quando há omissão para corrigir os casos de distorção.
São duas as principais preocupações dos trabalhadores brasileiros: os baixos salários e o desemprego. Não adianta instituir uma enorme “quantidade de direitos” se eles desaparecem com a perda do emprego; nem adianta ficar empregado com salário aviltante. Alguns “novos direitos” criam impactos quando são estabelecidos, mas, com o tempo, acabam incorporados ao rol do “mínimo possível”. Os 40% do FGTS foram aprovados como forma de se evitar a dispensa arbitrária, mas ninguém hoje acredita que esse valor realmente impeça uma demissão. O mesmo se diz quanto à elevação do percentual para 50% da hora extra como meio de se conter tal prática. Para o empregador, o que interessa é o gasto total com o empregado e, para este, o quanto ele poderá gastar com seu salário.
Embora o Direito do Trabalho possua um extenso corpo legislativo, tais demandas não dependem apenas da vontade da lei, mas de sua conexão com o mercado e as corporações. A via econômica deve estar em consonância com a via jurídica, para que os interesses dos trabalhadores sejam conquistados. É possível que esses interesses de classe não sejam do agrado de todos, nem mesmo dos trabalhadores que se sentem confortáveis com suas conquistas. Não que estas devam acabar, mas é possível que algumas delas tenham de dar lugar a outras conquistas de outros trabalhadores.
O maior problema não é a perda de direito, é saber que seu ganho foi em vão. Quando a perda ocorre em prol de uma melhoria coletiva, há satisfação por parte de quem perde. Se isso ocorre no seio familiar, entre amigos, em pequenas coletividades, por que não ocorreria num âmbito maior? Nesse caso, a satisfação é bem maior. Muito mais difícil de aceitar é a eventual perda de direito em função do mercado, da má administração, do desperdício, da corrupção ou do estelionato. Qualquer um pode dar certa quantia a um mendigo e se sentir em paz com a própria consciência, mas, se esse mesmo valor lhe for furtado provavelmente a pessoa chamará a polícia. A consciência social é um elemento importante para a socialização de direitos, porém depende do arbítrio do ser humano. É necessário incentivar essa espontaneidade com mecanismos legais e de mercado, usando-se a coação apenas contra a ilegalidade. Há diferença entre doar e ser expropriado. Para o mercado, o resultado pode ser o mesmo, mas não para a consciência humana.
Não basta a redução da exploração econômica se não houver redução da relação de dominação. Os índices estatísticos podem apontar aumento da produção, do emprego e até do salário, mas se esses fatores positivos não forem acompanhados de satisfação por parte da população (legitimação), a vitória não corresponderá a um avanço social. A ética profissional, a responsabilidade pelas decisões tomadas, a confiança e a solidariedade são semeadas paulatinamente, com convencimento. Nesse sentido, repito, a via jurídica e a econômica devem estar muito bem entrosadas, caso contrário uma pode acabar travando a outra. O direito não é só burocracia, e economia não é só lucro.
Para o raciocínio aqui desenvolvido, o mais importante é ressaltar todos os pagamentos remuneratórios que não são recebidos de imediato. Há um hiato entre uma obrigação do empregado já cumprida e uma promessa de o empregador pagar. Uma espécie de zona perigosa. O empregador, que é um eterno devedor, se utiliza dessa “vantagem” para praticar a autotutela, isto é, não pagar se o serviço não estiver a contento do seu ponto de vista; não pagar porque preferiu pagar outro credor mais forte; ou porque não recebeu o pagamento decorrente de seu contrato comercial ou administrativo; ou simplesmente porque não quis pagar, enriquecendo ilicitamente. Prevalece no Direito do Trabalho a fórmula “primeiro trabalho, depois salário”, com sérias consequências para o inadimplemento, a falta de efetivação do direito, o perigo de o trabalhador injustamente figurar na lista de devedores do SPC (Serviço de Proteção ao Crédito).
Esse costume de “primeiro trabalho, depois salário” é uma das causas do enorme volume de ações trabalhistas ajuizadas invariavelmente pelos trabalhadores. E uso a expressão “costume” porque a lei não impede o pagamento antecipado do salário. Os trabalhadores que não recebem seus direitos procuram os advogados, que os aconselham a ajuizar reclamações, a exercitar seu direito constitucional de acesso à justiça, a negociar, se for o caso, ou aguardar a sentença sucedida de uma execução.
Não que o empregador esteja obrigado a pagar o empregado antes da prestação do serviço, pois o empregado também pode executar um serviço malfeito ou ficar com o dinheiro sem prestar o serviço. Há um meio-termo para resolver esse impasse: obrigar o empregador a depositar o salário ou parte significativa dele em mãos de terceiros — um órgão público ou um ente confiável que preste este serviço público, isento de eventual conflito das partes —, de forma a ser liberado quando do cumprimento da obrigação. Se já temos o complexo FGTS, por que não exercitarmos também o depósito do salário e de parte dos direitos rescisórios? O resultado seria a redução do volume de ações trabalhistas, a substancial diminuição da dependência do empregado ao empregador, e o crédito salarial passaria a existir no mercado de forma semelhante a outros créditos, dando maior dignidade ao trabalhador, que se tornaria um credor mais respeitado.
A garantia do crédito salarial é um mínimo para um estágio mais elevado de dignidade do trabalhador e para a redução da dominação. Além disso, valoriza o salário juridicamente, ainda que o aumento do seu valor dependa de outros mecanismos, como negociação coletiva, fixação de remunerações por meio de corporações, condições próprias da economia e do mercado e de uma legislação mais adequada que proteja aqueles que recebem baixos salários.
Outro tema importante a ser enfrentado é o da elevação do valor real do salário. O aumento do salário mínimo é uma antiga fórmula que atenua a lei de oferta e procura do mercado de trabalho. Nossa Constituição “garante” o salário mínimo fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às necessidades básicas do trabalhador e de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e Previdência Social, a partir de reajustes periódicos que preservem o seu poder aquisitivo, sendo vedada a sua vinculação para qualquer fim.
A questão é que os cálculos realizados não atingem esse desiderato, ou porque “são ruins” ou porque há o natural “efeito cascata”, que eleva diversos outros valores, inclusive o do salário do chefe daquele que recebe salário mínimo. Caso contrário, haveria uma espécie de distribuição de renda entre aqueles que possuem salário mais baixo. O operário receberia igual ou quase igual a seu chefe, mas o chefe deste recebia bem mais. Assim, o salário mínimo é uma proteção para quem recebe salários módicos, mas não soluciona a má distribuição de renda.
Com o reajuste do salário mínimo, o que se compra também tem seu preço reajustado, num círculo vicioso. É certo também que a Constituição, prevendo esse mecanismo, vedou a vinculação do salário mínimo a qualquer outro fim (desindexação do salário mínimo). O efeito cascata diminuiu, mas não totalmente. Também por muito tempo se justificou a baixa elevação do salário mínimo em função das despesas do Estado com aposentadorias. Não à toa a Constituição de 1988 também as limitou ao mesmo teto mínimo, como forma de elevar a dignidade daqueles que a recebem. Esse aperto no salário-mínimo foi flexibilizado no governo FHC, quando se liberou a possibilidade de se adotarem pisos salariais por leis estaduais, o que vem ocorrendo até hoje.
Temos, assim, a lei do salário mínimo, as leis estaduais de pisos de ocupações profissionais e os pisos por negociação coletiva nos locais em que existe sindicato. Mas falta a conquista do aumento remuneratório por meio da valorização da força de trabalho do grupo profissional, com aperfeiçoamento da prestação de serviço. Pelas regras do mercado, não basta fazer greve; a mão de obra tem de ser valorizada para o empregador e socialmente. Não são todas as ocupações profissionais que devem ou podem fechar o mercado, apenas as que exigem maior expertise. Nesse campo devem estar incluídas as ocupações técnicas de modo geral, dependentes de formação educacional específica e de certo tempo de experiência. Por isso a Constituição estabelece que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Ou seja, a lei pode estabelecer condições para o exercício da profissão.
Os sindicatos que representam categorias inteiras por ramo de atividade do empregador (iniciativa aperfeiçoada durante a ditadura militar e aceita no período democrático) têm dificuldade de efetivar tal valorização da força de trabalho. Já os sindicatos que representam trabalhadores de poucas grandes empresas são os que mais têm conseguido elevar o nível dos salários por negociação, caso dos bancários e dos petroleiros, onde o capital público atua e é mais generoso. Já nos sindicatos de trabalhadores que negociam com centenas de empresas, nota-se maior dificuldade de elevação do piso salarial. As corporações menores, formadas por grupos de ocupação profissional mais delimitados e com maior controle sobre seus representados, contam com maior força de pressão.
As reivindicações possuem mais consistência e apoio da comunidade quando estão em questão normas éticas, técnicas e de compromissos não só com o empregador, mas com a própria corporação e a sociedade. O sindicato surgiu historicamente para dirimir a concorrência entre trabalhadores, sendo a relação com os empregadores mera consequência. Os pisos não eram negociados, eram os sindicatos que os estabeleciam e, para serem cumpridos, era preciso que nenhum trabalhador vendesse sua força de trabalho abaixo da tabela. No Brasil, os sindicatos constituídos por ramos de atividade do empregador reduziram essa possibilidade. Foram os profissionais liberais, como advogados e médicos, que mantiveram tal prática por meio de seus conselhos profissionais.
O Direito do Trabalho trata quase exclusivamente das relações entre o empregado e o empregador, pouco se detendo nos efeitos dessa prestação de serviço em relação à sociedade. O que houve foram apenas tentativas de ampliar a participação dos empregados na administração da empresa. Isso porque o viés do Direito do Trabalho no Brasil sempre foi mais contratualista que corporativista, e os sindicatos foram levados a se posicionar também de forma contratualista, embora no âmbito coletivo. A função do trabalhador deve ser expandida em prol da sociedade e não apenas em prol do empregador, já que a propriedade privada e a empresa têm, por consequência, a finalidade social demarcada no nosso atual ordenamento constitucional. Para isso, o aperfeiçoamento das corporações no sentido de valorizar sua força de trabalho é uma condição essencial. As campanhas de greves também são meios heterodoxos de se chegar aos aumentos salariais, pois ocorrem de tempos em tempos, quando ocorrem. Não são um meio ordinário de valorização da força de trabalho.
Mas ainda há outras questões importantes a serem analisadas, como o combate ao desemprego e a valorização do trabalho remunerado num sentido geral e não apenas em relação a um determinado grupo profissional. A garantia do salário depende, antes de tudo, da existência do emprego ou de algum outro tipo de trabalho remunerado, dado que o desempregado não recebe salário, podendo apenas receber benefícios sociais ou tornar-se um trabalhador autônomo.
A quantidade de empregos deriva de alguns pontos centrais, como o estágio social e econômico em que a humanidade vive. O desenvolvimento econômico sempre foi um fator, talvez o principal, para o surgimento e a variação do índice de emprego. As taxas de emprego aumentam quando a economia vai bem e diminuem quando ela entra em crise. Porém, mesmo com a economia no auge, a quantidade de candidatos a emprego ainda é significativa. Ou seja, a sociedade precisa de mais postos de trabalho do que o mercado oferece em seus melhores momentos. O pleno emprego, portanto, é uma utopia do capitalismo em países como o Brasil.
A questão que tem sido levantada por sociólogos e economistas nas últimas décadas é que as empresas só precisam de determinados tipos e de determinada quantidade de trabalhadores. Por mais que a economia cresça, haverá desemprego, e esse é um problema social que não pode ser deixado apenas para a via econômica do capitalismo liberal. Também é preciso que exista uma mão jurídica para ajudar o trabalhador desempregado.
Temos, assim, certa quantidade de postos de trabalho indispensáveis para a manutenção da produção, tanto para os trabalhadores qualificados quanto para os sem qualificação, e essa quantidade admite apenas uma pequena variação em função da situação econômica do país (ou do mundo). Mas existe também uma necessidade totalmente social (não econômica) de se conceder ocupação remunerada para grande parte da população poder se alimentar e não entrar em depressão, o que tanto prejudica os relacionamentos familiares e sociais[77]. Esse é o direito ao trabalho, que, na verdade, passa ao largo do Direito do Trabalho, que já parte do pressuposto que o trabalhador se encontra contratado.
Assim, um direito de cidadania e o outro direito trabalhista se interligam em alguns momentos. Por isso entendo que o Direito do Trabalho deve alargar seus horizontes, não ficando tão centrado no contrato, a fim de enxergar também o mercado, que é onde nascem os direitos. Um salário satisfatório e uma jornada adequada (salário mínimo e limite de oito horas) não dependem unicamente do que é fixado na lei trabalhista, mas também das condições sociais.
A ocupação do cidadão na sociedade é um tema bem mais amplo. O direito não regula só o cidadão durante a jornada de trabalho, mas também o que ele faz na jornada de descanso ou quando está desocupado. O cidadão, quando anda na rua ou vai à praia, está exercendo um direito e cumprindo obrigações. A linha divisória entre jornada e descanso hoje é bem mais tênue para boa parte da população em decorrência dos meios de comunicação a distância, e não só no teletrabalho formal. Hoje todos os cidadãos podem responder a compromissos em qualquer lugar e a qualquer hora por meio de seus celulares. E com isso a relação de dominação não reside apenas entre empregado e empregador, também atinge quem está desempregado. A exploração econômica direta (mais-valia) existe na vigência do contrato, mas a de dominação é expandida em toda a sociedade. O exército industrial de reserva de que Marx falava talvez seja a primeira grande força motivadora da dominação, mas, nesse caso, não se pode culpar determinado empregador, pois ela vem “de fora da empresa”, vem da relação de classe existente na sociedade.
Os governantes devem ter ciência de que a sociedade poderá continuar convivendo com uma parte significativa da população que não será contratada, porque não há necessidade econômica para a sua contratação. A sua contratação deverá ou poderá ocorrer por meio da mão jurídica.
O desemprego não pode ser visto apenas como “quantidade de empregos”, como se tais unidades fossem iguais. O aumento de 10% ou 30% de vagas no mercado, quando apresentadas dessa forma, faz parecer que todos os postos de trabalho se equivalem como unidades matemáticas (1+1=2). A estatística tem dificuldade de avaliar a qualidade do posto de trabalho e até mesmo a sua duração e o seu salário. Percentuais de desemprego são dados importantes para o mercado, mas não revelam totalmente o nível de qualidade social.
É preciso valorizar o profissionalismo e a qualidade dos trabalhadores, assuntos dos quais já tratamos. O empregado de uma empresa não deve ter apenas a obrigação de servir bem a seu empregador, mas também ao cliente, ao usuário, ao consumidor, enfim, ao outro cidadão. E aqui voltamos à mesma questão de que falamos anteriormente em relação à valorização do salário.
Há a defesa da educação como forma de combate ao desemprego, mas, na verdade, ela é, em grande parte, uma opção para melhor preparar o trabalhador para concorrer com outro. Melhorar a concorrência entre os trabalhadores pode ser uma forma individual de solucionar o problema, todavia não serve para o conjunto dos desempregados. A formação educacional deve ser combinada com a valorização do grupo ocupacional.
Há limite de vagas tanto para os trabalhadores desqualificados, que vão ao mercado de trabalho oferecendo apenas sua confiança ou sua força física, quanto para os que vão com alguma especialidade profissional ou grande experiência prática. No primeiro caso, a oportunidade de emprego pode surgir por meio de amizade, por ser o primeiro da fila, enfim, por estar no lugar certo na hora certa. No outro caso, também existem tais condições, mas há maior poder de concorrência em termos de habilidade ou habilitação profissional.
Portanto, a premissa normalmente utilizada de que a qualificação, por si só, resolveria o problema do desemprego não é verdadeira se não for combinada a outros fatores, como o corporativo e o legal-jurídico. Também é preciso combinar os custos com os benefícios do investimento na educação. Nesse sentido, há uma compensação entre esforço e conquista. A qualificação universitária de longa duração não necessariamente se sobrepõe à formação técnica, pois esta pode estar sendo mais exigida no mercado. A política de emprego depende de planejamento global, não apresentando muitos efeitos as políticas concentradas em certos setores, como o de jovens, já analisado por nós.
Empresários reclamam que não conseguem determinados profissionais para preencher oferta de vagas. Nesse caso, o que ocorre é uma falta de sorte de o trabalhador ter escolhido mal o que deveria estudar? Como saber o tipo de profissional que será procurado dentro de alguns anos? E se essa procura for transitória? Quando investe, o empresário faz essas ponderações, já o trabalhador apenas segue o que aquele decidiu. Essa situação só pode ser equilibrada com a formação de corporações de trabalhadores profissionais, no sentido de regulamentar a própria profissão que é ofertada no mercado, a ponto de os empresários e os profissionais interagirem sobre o que é importante para a oferta de postos de trabalho.
A qualificação profissional dependeu de um esforço que envolveu despesas e gasto de tempo, próprios do sistema educacional, também para o Estado. Por isso, o esforço individual deve ser combinado com um esforço corporativo, para que exista algum tipo de regulamentação entre a necessidade da mão de obra e a quantidade de oferta de trabalhadores ou de serviços especializados. Corporações como a OAB têm encontrado dificuldade para impedir a quantidade de novos filiados, elaborando difíceis exames de acesso ao exercício da profissão.
Há muito as classes não estão limitadas a dois grandes blocos, o de operários e o de burgueses. A classe média é hoje uma camada poderosa, bem remunerada e que tem servido de preposta aos empregadores. Também se encontra dentro da estrutura da administração pública. Constitui a classe de professores que ensinam o povo. São os juízes e os advogados, que administram a justiça. Pode-se dizer que isso não é uma novidade, mas atualmente o poder da classe média é bem maior, substancialmente num regime democrático e de capital flexível.
Mesmo com essas providências, ainda haveria uma gama enorme de trabalhadores deslocados, sem formação profissional mínima, que, basicamente, acabariam vendendo sua força de trabalho para atividades totalmente desqualificadas, que qualquer pessoa em bom estado mental e físico poderia exercer. Esse é o problema social que só pode ser enfrentado por meio de solidariedade combinada com intervenção do Estado. O mercado, voluntariamente, não tem resposta para esses trabalhadores. Eles não se encaixariam nem no exército industrial de reserva, já que poucos poderiam substituir os desempregados com melhor qualificação, e nem são os lumpesinatos, já que não estão à margem da produção.
Para os trabalhadores mais desprotegidos e inorganizados, é preciso criar emprego mesmo que este não seja útil para o setor produtivo, e sim para a “sociedade não lucrativa”. A opção de conceder dinheiro (bolsa, renda mínima ou seguro-desemprego) abre espaço para desvios de finalidade, quando se paga a quem não trabalha, ou desvios de dinheiro, quando se paga a quem não precisa. O dinheiro público só deve ser concedido como medida de urgência, para suprir as necessidades imediatas de quem, por exemplo, foi surpreendido com demissão e levará algum tempo para se recolocar no mercado de trabalho. Ficar longo tempo sem trabalhar não é bom nem para ele nem para a sociedade. A perspectiva que acredito deva ser colocada é a de trabalho remunerado fora da necessidade das empresas. O incentivo ao trabalho que não tem a finalidade de gerar a tradicional mais-valia é uma necessidade hoje da sociedade e não do capital. Não me refiro à criação da via alternativa, mas a algo que responda ao mercado.
E aqui entra uma questão que foge à ortodoxia marxista: o capital deve precisar do trabalho improdutivo. Não só a administração pública deve ter o encargo de acolher mão de obra improdutiva (sem mais-valia), mas também, principalmente, o setor privado. O trabalho improdutivo é um caminho de solução para os desempregados contumazes. É necessário que o trabalho seja efetivamente exercido por esses trabalhadores desqualificados em frentes de trabalho legalmente regulamentadas, contratados por empresas ou outras entidades privadas. Devem ser criadas vantagens sociais ou mesmo econômicas para a contratação de trabalhadores. O capital pode ser induzido a contratar trabalhadores enquanto requisito para adquirir acesso a empréstimos governamentais, participar de licitações, receber isenções, assim como a própria população pode dar preferência de consumo a produtos e serviços de determinadas empregados que empregam trabalhadores.
Hoje cresce o “mercado de consumo limpo”, aquele em que o consumidor paga mais para obter um bem que foi produzido sem ferir o meio ambiente, o patrimônio público e valores sociais. Tais empresas que contratam trabalhadores que não encontram emprego após longa busca podem também ter maior acesso a licitações e financiamentos. Os sistemas de cota existentes hoje para pessoas com deficiência física e aprendizes encontram apenas na lei a sua obrigação única. As cotas sociais podem ser reguladas com vantagens expressas às empresas que contratam.
É preciso, portanto, que o Direito do Trabalho se desloque um pouco do centro das regras do contrato bilateral para que possa contribuir também com a proteção do trabalho. E não apenas em face do empregador, mas também do mercado. Regras de proteção do trabalhador fora do contrato devem ser desenvolvidas pela legislação, regras que, de alguma forma, possam ser combinadas com o próprio mercado, pois não estamos vivendo uma revolução que ponha fim ao mercado.





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[1] Norberto Bobbio possui uma conhecida dissertação sobre o tema: Direito e Esquerda: Razões e significados de uma discussão política, cuja leitura recomendo a quem estiver interessado em se aprofundar no conceito de esquerda.
[2] É interessante observar que entre os mais respeitados por Marx se encontravam os pais do liberalismo burguês, Adam Smith e David Ricardo.
[3] Carl von Clausewitz, general de Napoleão, autor do livro Sobre a Guerra: A Guerra é a Continuação da Política por Outros Meios, teceu teorias sobre tática e estratégia aproveitadas pelos marxistas.
[4] Para um conhecimento mais profundo dessa distinção histórica, sugiro a leitura do clássico Que fazer?, de Lenin, em contraposição ao estatuto e ao manifesto de criação do PT.
[5] Ver, por exemplo, o livro Pedagogia do Oprimido, de 1970.
[6] Após retornar do exílio, Luiz Carlos Prestes tentou se filiar ao PT, mas foi rejeitado pelos católicos ligados a Lysâneas Maciel, candidato do PT que perdeu para Leonel Brizola (PDT) a eleição de 1982 para o governo do Rio de Janeiro.
[7] A expressão progressista era muito usada para justificar campos de aliança bem amplos. Todos os que eram contra a ditadura, fossem liberais ou democratas, eram considerados progressistas. Até Teotônio Vilela, oriundo da Arena, passou a ser reconhecido como uma espécie de patrono da democracia, sendo enaltecido pela esquerda.
[8] A ideia da esquerda de criar uma “frente de luta” é antiga, mas com ínfima eficácia, já que desde o início de sua criação houve disputas por sua liderança. A direita acabou criando a Frente Liberal, que impulsionou a eleição de Tancredo Neves em 1985. No campo da esquerda, o próprio PT acabou sendo uma espécie de “frente”, unindo marxistas, cristãos e independentes.
[9] A primeira vitória significativa foi em 1988, com a eleição de Luiza Erundina (PT) para a Prefeitura de São Paulo.
[10] Propostas como a do não pagamento da dívida externa e do aumento do salário mínimo pelo índice do Dieese (Departamento Sindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos) não seriam suficientes para gerar riqueza, manter empregos e administrar a máquina burocrática do Estado.
[11] A greve dos petroleiros durou mais de 30 dias, foi julgada abusiva pelo TST (Tribunal Superior do Trabalho) e terminou com a intervenção do Exército e a aplicação de multa ao sindicato. Voltaremos a falar dessa greve.
[12] O art. 5º, §1º, da Lei nº 10.748, de 2003.
[13] Faço aqui uma analogia com a década de 1980, chamada pelos neoliberais de “década perdida”, já que o Brasil teria demorado a abrir o mercado.
[14] MP n.o 293 e MP n.o 294, de maio de 2006. Foi proposto um CNRT (Conselho Nacional de Relações de Trabalho) tripartite, com a predominância do Ministério do Trabalho, para tratar de questões sindicais, além de outras medidas.
[15] Lei n.o 10.820, de dezembro de 2003.
[16] A Constituição de 1988 consagrou o combate a quaisquer formas de discriminação (inciso IV do art. 3º) como um dos objetivos da República.
[17] Émile Dürkheim perguntaria onde a divisão entre público e privado começa e onde acaba. “Sabe-se quão controvertida é esta questão; não é científico fazer uma classificação fundamental basear-se numa noção tão obscura e mal analisada” (2010, p. 36). Hans Kelsen já acreditava inexistir uma distinção satisfatória entre direito público e privado (1999, p. 310).
[18] Raros são os exemplos de marxistas que procuraram concentrar seus estudos no direito. E parece até simbólico que um dos principais deles, E.B. Pachukanis, tenha sido executado pelo sistema socialista soviético da época de Stalin.
[19] O filósofo inglês John Locke, em Segundo Tratado sobre o Governo (p. 45) escrito no final do século XVIII, já cuidava da teoria do valor quando afirmava que “o que for que o homem retire do estado que a natureza lhe forneceu e no qual o deixou, fica-lhe misturado ao próprio trabalho, juntando-se algo que lhe pertence, e, por isso mesmo, tornando-o propriedade dele”. Locke combateu o desperdício para que não se criassem injustiças. Ou seja, a propriedade deveria ser limitada, o excedente pertenceria a terceiros e a natureza fixaria a medida da propriedade pela extensão do trabalho do homem e a conveniência da vida, limitando a posse de todos a proporções moderadas. No livro citado (p. 53), Locke analisa o surgimento das cidades, com seus limites e leis, a criação do dinheiro, objeto durável que os homens poderiam guardar sem o risco de estragar, e o consequente desenvolvimento da doutrina da posse desigual, através do consentimento tácito e voluntário que visava ainda limitar a ação do Estado, através do Parlamento. Também o Cristianismo, na pessoa do papa Leão XIII, em sua famosa Rerum Novarum, de 1891, defendia que “o direito de propriedade é fruto do trabalho humano”. Advertia, porém, que o gozo da terra não poderia ser dado a todos ao mesmo tempo, de forma confusa. Assim, Deus não a teria legado a nenhum homem em particular, deixando a limitação das propriedades à indústria humana e à instituição dos povos. Quem não tivesse propriedade deveria suprir sua ausência com o próprio trabalho, “o meio universal de prover as necessidades da vida”. É nesse cenário que a Igreja Católica passa a se preocupar com a questão social e o salário justo.
[20] Marx, “Carta a Schweitzer”, in: As Lutas de Classes na França (1848 a 1850).
[21] Que é uma Constituição? Algumas edições levam o título de A essência da Constituição.
[22] O nome oficial do texto, escrito em 1875, é Observações à Margem do Programa do Partido Operário Alemão.
[23] In: O Socialismo Jurídico.
[24] Hans Kelsen afirmava que Marx não dava resposta ao caso do indivíduo que, por alguma razão, não produzia segundo a sua capacidade, isto é, em conformidade com o que deveria produzir (1979, pp. 51–57). Essa era realmente uma questão prática a ser colocada para a sobrevivência do princípio “de cada qual, segundo sua capacidade, a cada qual, segundo suas necessidades”, defendida por Marx.
[25] Sobre o tema, ver Bettelheim (1976) e Mayer (1995).
[26] Isso fica claro no texto de Lenin As Tarefas Imediatas do Poder Soviético.
[27] Ver o texto de Lenin Uma Grande Iniciativa.
[28] Tribunal Velho e Tribunal Novo, escrito em 1918, in: Stutchka, Piotr (2001).
[29] Direito Proletário, de 1919, in: Stutchka, Piotr (2001).
[30] Idem.
[31] A Legalidade Revolucionária, escrito em 1922, in: Direito de Classe e Revolução Socialista.
[32] Direito de Classe e Revolução Socialista, p. 74.
[33] Teoria Marxista do Direito, 1923.
[34] Podvolotsky se referia a Rudolf Stammler.

[35] Sobre o assunto ver M.B. Naves (2000).
[36] O Estado e a Revolução, pp. 113–114.
[37] Aparelhos Ideológicos de Estado (pp. 66–69).
[38] O Estado, o Poder, o Socialismo (pp. 94–96).
[39] A Legalização da Classe Operária, escrito em 1978.
[40] Abordarei o Direito do Trabalho em outro capítulo, situando-o aqui no contexto mais geral do direito nas universidades.
[41] Sobre aburguesamento, ver: Roger Garaudy (1970); André Gorz (1968); Daniel Bell (1973); Charles Wright Mills (1969); Ernest Mandel (1982).

[42] “O direito vivo é aquele que, apesar de não fixado, em prescrições jurídicas, domina a vida”, Eugen Ehrlich (1986, p. 378).
[43] O livro O que é Direito? foi publicado pela primeira vez em 1982.
[44] No direito do trabalho, uma das poucas decisões alternativas que vi foi quando o juiz fixou de ofício um valor “equânime” ou “justo” numa lide em que o trabalhador ajuizava uma ação de reconhecimento de vínculo de emprego com um dono de carrocinha. Se o trabalhador ganhasse a causa, o valor da condenação seria exagerado e de impossível execução; se perdesse, nada receberia. Embora “justa” a sentença, ela quebrava todas as regras processuais existentes. Foi mais uma espécie de “acordo imposto” às partes.
[45] Tais considerações não estariam tão distantes daquelas da época da Revolução Bolchevique, sendo que o critério do “justo” não era adotado pelo governo, como ocorria alhures. Dessa forma, o “legalismo” era a forma de manifestação do governo, ou das classes dominantes.
[46] Cito, como exemplo, o princípio muito divulgado nos cursos de Direito do Trabalho: in dubio pró operario, que, nas sentenças, não chega a ser aplicado, o que iria contra a rígida regra de divisão do ônus da prova. Já quando há lacuna da lei, os princípios se encaixam como luva, por previsão da própria lei processual.
[47] A Reforma Trabalhista de 2017 é que, de alguma forma, regulamentou o negociado sobre o legislado.
[48] A propósito, a MP n. 1.053, de 1995, do Plano Real de FHC, proibiu a cláusula de gatilhos, cerceando a livre negociação: “Art. 13 – No acordo ou convenção e no dissídio coletivo é vedada a estipulação ou fixação de cláusula de reajuste ou correção automática vinculada ao índice de preços.”
[49] A Reforma Trabalhista de 2017 é que permitiu o “rompimento” da lei já existente, por meio de negociação coletiva, mas limitado a casos especificados no novo art. 611-A da CLT.
[50] “As empresas com até 20 empregados, bem como aquelas nas localidades em que os trabalhadores não estejam representados por organizações sindicais de primeiro grau, poderão celebrar o contrato de trabalho previsto no caput deste artigo, mediante acordo escrito entre empregado e empregador, observado o limite estabelecido no inciso I do art.3º desta Lei.”
[51] O governo FHC estava preocupado com a negociação coletiva, talvez nem tanto com o sindicato. Pois, no episódio da MP sobre participação nos lucros, a negociação coletiva foi proposta por uma “comissão de empregados”, o que foi declarado inconstitucional pelo STF.
[52] Prado (2001, p. 157) traz opiniões de vários juristas e sindicalistas sobre propostas de alteração da legislação do trabalho.
[53] A Cipa (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes), criada em 1944 pelo Decreto-lei n.o 7.036, que tratou de acidente de trabalho e obteve grande sucesso; e a comissão paritária dos canavieiros, criada pelo Decreto-lei no. 3.855, de 1941, que não foi adiante por não obter o apoio dos juízes do trabalho. As próprias Juntas de Conciliação e Julgamento e as Comissões Mistas de Negociação, criadas em 1932, tinham natureza extrajudicial, embora vinculadas ao poder executivo e não a sindicatos ou empresas. Com natureza privada foram as duas experiências citadas.
[54] Sempre fui contra tais projetos, seja por obrigarem à negociação, seja por tornarem a transação com força de coisa julgada.
[55] É uma forma de fraude a contratação de empregados especializados por meio de pessoa jurídica constituída pelo trabalhador, geralmente tendo um parente ou amigo como sócio minoritário.
[56] “Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei n.o 7.102, de 20 de junho de1983) [e trabalho temporário (Lei no. 6.019, de 3 de janeiro de 1974)] e de conservação e limpeza, bem como de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.”
[57] Essa lei garantiu alguns direitos de equiparação no caso de os terceirizados laborarem no mesmo local que os empregados da contratante, o que já estava previsto no projeto anterior da terceirização. Mas, diferentemente deste, a lei não adotou as garantias de caução, nem as obrigações junto aos sindicatos e tampouco a responsabilidade solidária.
[58] A Reforma Trabalhista alterou o citado art. 4–A para permitir a terceirização, “inclusive de sua atividade principal”, da contratante.
[59] Respectivamente, Lei n.o 9.689, de 1989, e Lei n.o 10.790, de 2003.
[60] Houve uma Emenda Constitucional em 2006, de n.o 51, que permitiu o acesso de tais trabalhadores por meio de seleção, mas não de concurso público, sendo aproveitados os já existentes. Ver Lei n.o 11.350, de 2006, artigos 9º e 17º; e Lei n.o 13.026, de 2014.
[61] Certamente houve abuso por parte de muitos sindicatos ao fixarem altas taxas a seu favor, mas a atuação do MPT, que culminou com a criação pelo TST do Precedente n.o 119, e depois pelo STF da Súmula n.o 666 e da Súmula Vinculante n.o 40, foi a de combater qualquer tipo de cláusula de cobrança sob o argumento de ferir a liberdade de filiação. Com isso secou importante fonte de receita sindical, que tinha respaldo no inciso IV do art. 8º da CF/88. O melhor seria uma regulamentação para evitar abusos.
[62] Refiro-me ao senso comum sobre o Direito do Trabalho. Contudo, a sua legislação visa apenas regular a relação entre empregado e empregador, tanto é que também protege o empregador.

[63] Até mesmo em regimes socialistas se manteve a exploração econômica em favor do Estado e a subordinação jurídica, sendo que esta nem sequer pode ser dispensada no trabalho coletivo. Em países como Cuba existe o Código do Trabalho.
[64] A Lei n.o 4.625, de 31 de dezembro de 1922, criou o imposto geral sobre a renda. Mas grande parte dos trabalhadores era rural ou semi-informal, o que impedia o controle por parte do governo sobre o que era anotado na carteira de trabalho, quando esta era anotada.
[65] Importante nessa época foi a promulgação da Lei de Imprensa e da Lei do Jornalista, pois tratavam de um ramo econômico em expansão (rádio, TV e jornais), sensível em regime sob censura.
[66] Segundo Jarbas Passarinho (1969), então ministro do Trabalho, “embora inconveniente, a contribuição sindical é, na pior das hipóteses, um mal necessário”.
[67] Refiro-me, principalmente, à Instrução Normativa n.o 4, de 8 de agosto de 1993 (revogada em 2003), que, a título de uniformizar o procedimento de dissídio coletivo, exigiu uma série de formalidades para o ajuizamento da ação, muitas de difícil cumprimento. Com isso quase todos os dissídios coletivos foram extintos sem julgamento do mérito, o que, entre os operadores do direito, passou a ser chamado de extermínio de ações.
[68] Não houve mera transferência do Ministério do Trabalho para o Judiciário, já que aquele órgão administrava, regulamentava e punia toda a estrutura sindical, enquanto este passou a tratar apenas de alguns litígios isolados entre partes.
[69] Na década de 1990, o livro A Era dos Direitos, de Norberto Bobbio, serviu de manual sobre as novas fases do direito. No mesmo sentido, foi muito divulgado o antigo texto de T.H. Marshall Cidadania, Classe Social e Status, de 1949, que expõe três fases do direito.
[70] Certamente todos esses fatores geraram novas manifestações empresariais contra a Justiça do Trabalho. E esse cenário evoluiria, sem dúvida, para a elaboração da Reforma Trabalhista de 2017, com regras contra boa parte da jurisprudência do TST e criando limites ao poder do juiz na execução.
[71] É simbólico que no rol de prioridades de atendimento em bancos e outras instituições não seja incluído quem está trabalhando, que tem apenas a hora do almoço para ter acesso a atendimento.
[72] ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Constitucional) n.o 130-7, de abril de 2009.
[73] Apenas socializada, com limitação sobre o poder de propriedade, como já ressaltado, e não nos moldes do socialismo.
[74] Em Anti-Dühring (pp. 187-188), Engels analisa em detalhes o processo de repasse da mais-valia. Diz que, para Marx, o capitalista que produz mais-valia, isto é, que subtrai diretamente dos operários certa quantidade de trabalho não pago, que ele realiza em mercadorias, é o primeiro a apropriar-se dessa mais-valia, mas não o seu último proprietário. Pois ele é obrigado a reparti-la com os capitalistas que exercem outras funções no conjunto da produção social, caso do proprietário territorial. A mais-valia divide-se, portanto, em várias partes que se destinam a categorias diversas de pessoas. Cada uma dessas partes se reveste de uma forma especial, independentemente das outras, tais como lucro, juros, ganho comercial, renda territorial etc. Engels adverte que não se deve confundir mais-valia com lucro ou ganho do capital. Os dois últimos quase sempre representam frações da mais-valia. O lucro comercial também constitui uma parte da mais-valia. Em tais circunstâncias, isso só é possível se o fabricante vende seu produto ao negociante abaixo de seu valor, cedendo-lhe, assim, uma parte de seu espólio.

[75] Ver: Salário, Preço e Lucro.
[76] São muitas as greves acusadas de terem sido provocadas pelos próprios empregadores para não cumprir contrato, aumentar tarifas ou forçar o Estado a conceder algum benefício. A greve nacional dos caminhoneiros de 2017, por exemplo, foi uma greve direta contra o governo (Petrobras) com o objetivo de reduzir o preço do combustível, que unia interesses de empresas, empregados e autônomos.
[77] Esse enfoque foi bem desenvolvido por Viviane Forrester em O Horror Econômico.