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Artigo: Justiça sem mérito? Judicialização e desjudicialização da Justiça do Trabalho




Ivan Alemão[2]


1.      A judicialização e o papel pioneiro da Justiça do Trabalho



A judicialização significa a transferência do conflito social para o judiciário (Bernardo Sorj, 2.000), dando início ao ativismo judicial ao mesmo tempo em que as autoridades administrativas adotam procedimentos semelhantes aos judiciais (Tate & Vallinder, 1995; Marcus F. Castro,1997, etc). Representa a crescente invasão do direito na organização da vida social e política (L.W.Vianna, 1999 e 2002). O surgimento de novos direitos difusos e coletivos, de novos procedimentos judiciais como o juizado de pequenas causas, de novos poderes como os do atual Ministério Público, todos em função da democratização que culminou no Brasil com a Constituição Federal de 1988, têm contribuído para a judicialização crescente das relações sociais em nosso país.

O direito do trabalho sempre foi considerado pioneiro na formulação de um direito especial, que  quebrou o aspecto formal  e individualista do próprio direito,  desformalizando-o (Weber,1999, Habermas,1997), através de sua feição coletiva e de proteção. Podemos afirmar que a judicialização começou cedo na Justiça do Trabalho, fruto da ascensão dos movimentos reivindicativos de classe, principalmente através dos sindicatos. Nas décadas de 30 e 40 surgiram o direito coletivo do trabalho, a ação coletiva trabalhista, as juntas de conciliação e julgamento com representação de empregados e empregadores e com ritos rápidos e diretos. Os conflitos de classe foram encaminhados para a Justiça do Trabalho com objetivo de serem solucionadas por meio pacífico. Oliveira Vianna (1938), um dos principais mentores da Justiça do Trabalho, defendia-a enquantoentidades administrativas providas de processualidade própria”. Por outro lado, o fato de poder criar regras - o poder normativo a ela conferido – também feriu a tradicional independência  dos três poderes. O sucesso dessa justiça foi tão grande que com a Constituição Federal de 1946 passou a integrar o Poder Judiciário, levando para seu interior mecanismos participativos, embora corporativos.

Os novos direitos da época eram os direitos trabalhistas. Hoje, no entanto, houve uma inversão com o surgimento de novos direitos coletivos difusos e que procuram defender interesses de cidadania, mais voltados para setores discriminados e para valores culturais e ambientais. Alguns dos novos interesses coletivos chegam a se chocar com os dos trabalhadores, especialmente através da contraposição entre indústria e meio ambiente. O próprio mundo do trabalho perde historicamente sua importância.



2.Transformações no mundo do trabalho



Na segunda metade do século XX ocorreram fortes transformações nas relações de trabalho. Algumas análises (Rosavallon,  1998 e Robert Castel,1998) apontam para o fato do mundo ter vivido os chamados 30 anos gloriosos do final da Segunda Guerra até a crise o petróleo na década de 70. O Estado do bem-estar social entra em crise por ter aumentado suas despesas com a redução da receita.

As transformações do mundo do trabalho são fruto da automação na indústria, tornando-se desnecessária a constituição de grandes parques industriais com enorme quantidade de operários. Assim, da mesma forma que o setor primário cedeu espaço ao setor secundário, agora este cede espaço ao setor terciário, mais concentrado no mercado que na produção. O temamundo do trabalho”, que envolve as relações de trabalho, a organização sindical e a jurídica passa a ser questionado. Há certo consenso sobre a diminuição da importância do trabalho fabril e operário no contexto internacional, embora haja divergência sobre a profundidade dessas mudanças. Alguns entendem que o trabalho e até a luta de classe deixaram de ser o eixo dos acontecimentos sociais (Gorz, 1996; Offe,1991; Habermas, 1997). O fim do trabalho passa a ser profetizado (Rifkin,1996), como o fora a História. Outras análises procuram demonstrar que tais mudanças correspondem às novas formas de exploração do trabalho, de exclusão social, com objetivo de abrir o mercado e enfraquecer o Estado. Esta análise é bem aceita no Brasil (Antunes, 1995 e 2000; Demo, 2000, Gorender, 1999), e tem influência do marxismo.

Mais especificamente no âmbito das relações de trabalho, destaca-se a redução do fordismo, que impunha ritmo de produção cadenciado. O cenário da relação entre capital e trabalho deixa de ser o da grande concentração fabril, para entrar em cena a acumulação flexível (Harvey,1992) ou capitalismo flexível (Sennett,1999). Em países como o Brasil aumentou o que passou a ser chamado de terceirização e precarização do trabalho, com destaque ao aumento da informalidade do trabalho, rotatividade de mão-de-obra e desemprego. Diversos postos de trabalho e até categorias inteira de trabalhadores são suprimidos, o que reflete no enfraquecimento dos sindicatos, principalmente os dos trabalhadores mais braçais.

No âmbito internacional, com o fim dos regimes do bloco comunista e com a hegemonia capitalista, o paradigma capitalista passou a ser o do tipo asiático, sem leis protetoras do trabalho e com a conseqüente prevalência das leis do mercado. Esses acontecimentos influenciam o direito do trabalho, que sempre foi calcado no princípio da proteção do trabalhador. Teses a favor da livre negociação contratual, da flexibilização contratual, crescem no campo do direito. No Brasil, no final do ano de 2001 a Câmara, sob caloroso debate e com enorme acompanhamento da mídia, aprova o projeto de flexibilização da CLT (PL 5.483/01). Mas com a eleição de Lula o projeto foi arquivado. Em agosto de 2003 o projeto de terceirização (PL 4.302/02) não foi aprovado em função da constituição do Fórum Nacional do Trabalho, onde o governo pretende concentrar os debates da reforma trabalhista. Todavia, a MP 130 de 17.09.03 veio a permitir o desconto em folha de dívidas de empréstimos a serem feitos pelos trabalhadores em instituições financeiras, o que enfraquece um antigo princípio de impenhorabilidade do salário.



3.      A Crise da Justiça do Trabalho?



Mesmo com as modificações do mundo do trabalho e a crise do Estado do bem-estar social, do sindicalismo e das leis trabalhistas, a Justiça do Trabalho no Brasil se mantém em sua estrutura formal, pelo menos até o ano 2000. Nesta época a Emenda Constitucional 24 de 9.12.1999, extinguiu a figura dos juízes classistas, e as leis 9.958 e 9.957 (ambas de 12.1.00), respectivamente, criaram as comissões de conciliação prévia e o procedimento sumaríssimo, conforme mudança na CLT. Ressalta-se que muitas propostas surgiram nos debates da CPI do Judiciário e da Reforma do Judiciário que tramita no Congresso, onde se destacam as propostas de controle externo e de súmula vinculativa. Em 1999 o relator da Reforma, Aloysio Nunes Ferreira, propôs o fim da JT e o então influente Antonio Carlos Magalhães defendeu, na CPI, a tese de Antonio Álvares da Silva  que propõe acabar com o Tribunal Superior do Trabalho, o poder normativo e transformar as juntas trabalhistas em juizados especiais da justiça comum.

Muitos estudos sociológicos estão atentos a esse processo e freqüentemente o relacionam à existência de crise da Justiça do Trabalho ou ainda de todo judiciário. Muitos autores apresentam como solução a democratização da instituição, embora acentuem dimensões distintas do problema.
Maria Célia Paoli (1994) afirma que é necessário mudar a forma de arbitragem monopolizada pelo poder público, baseado excessivamente em uma definição legalista e normativista de sua atuação.  José Eduardo Faria (1995) aprofundou o tema em seu livro Os Novos Desafios da Justiça do Trabalho. Para ele a Justiça do Trabalho passa por uma crise de identidade, fruto do esgotamento de um paradigma, por não conseguir responder à lógica econômica. Para Adalberto M. Cardoso (2002), o aumento das demandas trabalhistas corresponde à crise de legitimação do direito do trabalho, que os empregadores não estariam cumprindo as leis (p.520).
Mas é possível falarmos em crise da Justiça do Trabalho, da atuação dos juízes e dos ritos se primeiro definimos quais são as suas funções, para depois verificarmos se elas cumprem seu papel. Para Sadek (1995) a função primordial do Poder Judiciário é a distribuição da justiça, que exige autonomia em relação aos demais poderes e que pode ser adquirida com gerenciamento próprio de receitas, assim como a independência do juiz realizada com a efetivação de suas garantias de magistrado. Santos, Marques e Pedroso (1996), considerando como função crucial dos tribunais a solução de litígios, apresentam uma classificação de três funções, a instrumental (soluções de litígios, controle social e criação de direitos), a política (controle social, mobilização dos cidadãos e legitimação do poder político) e a simbólica (processo).
Até certo ponto a JT continuou exercendo a mesma função, porém mais fincada em sua tradição histórica do que cumprindo seu papel histórico de interferir nas relações de classe. Mas este quadro, em nosso entender, não é conseqüência apenas da atuação dos juízes. O desenho da Justiça do Trabalho não é feito por juízes, mas pelos advogados e ministério público, todos operadores do direito, inclusive a mídia.
Na década de 90 a cúpula do TST voltou-se para a administração formal dos segmentos que buscam a Justiça do Trabalho. Os critérios de avaliação são meramente burocráticos, no sentido de demonstrar que produziu bastante. São significativas as avaliações do TST em relação à quantidade de demandas. O TST constantemente avalia o aumento do número de demandas como “a confiança na Justiça do Trabalho daqueles que necessitam ter seu direito restituído” (Relatório de maio de 2003, Min.Presidente do TST Francisco Fausto de Paula Medeiros, site do TST). O critério utilizado é o quantitativo sem se levar em conta a sua qualidade e resultado. De toda forma, as questões levantadas indicam a relevância de discutir a tentar qualificar o processo em curso.



4.      Estudos sobre o poder judiciário



As ciências sociais vêm desenvolvendo algum tempo estudos relacionados ao mundo do trabalho e à justiça, porém é possível afirmar que aindapoucos estudos sobre a Justiça do Trabalho, nos moldes em que Oliveira Vianna (Problemas de Direito Corporativo), a configurou e que até hojeapesar do anunciado “Fim da Era Vargas” – ainda se mantém em grande parte.

A partir da década de 80 surgiram vários estudos sociológicos sobre a relação entre a instituição justiça e a sociedade. A preocupação deixou de ser apenas sobre o significado da “justiça em si”, para voltar-se para legitimidade da própria justiça (Luhmann, 1995 e Habermas, 1997, quando retoma estudos de Weber, por exemplo). Na década de 90 a ciência política passou a se preocupar com maior intensidade com o judiciário. No Brasil o processo de democratização, que culminou com a Constituição de 88, foi fator importante para incrementar os estudos sobre a instituição judicial, incluindo aqui o novo papel do Ministério Público e o surgimento de novas leis com direitos difusos.

Em março/maio de 94 foi publicado o dossiê/ Judiciário na Revista da USP, organizado por Sérgio Adorno, ainda no clima da véspera da CPI do Judiciário. Algumas pesquisas foram feitas sobre os juízes, destacando-se os coordenados por M.T.Sadek, a partir de 1993 no Idesp;  em 1996 a coordenada por L.W.Vianna, do IUPERJ. No ano seguinte surgiu a de Junqueira, Vieira e Fonseca. Na área da Justiça do Trabalho a pesquisa ainda é bem embrionária, tendo sido realizada a de Alvim & Fragale (UFF) em 1999.

Dois enfoques centrais foram dados por estas pesquisas. Uma que via a expansão do poder judiciário na política e na sociedade, o que veio a ser chamado de judicialização (Tate & Vallinder, L.W.Vianna, etc). Outro enfoque desenvolvido foi o da existência de uma crise do judiciário (Paoli, Faria, Sadek, Arantes, etc). As conclusões aparentemente são contraditórias, porém o primeiro enfoque está mais preocupado com o comportamento dos juízes e o outro com a estrutura formal. De toda forma, todos estudos buscavam aperfeiçoar o sistema judiciário.

Especificamente sobre a Justiça do Trabalho, destaco dois estudos. O de Maria Célia Paoli (Os direitos do trabalho e sua justiçaEm busca das referências democrática, 1994s). No ano seguinte Faria publicou um estudo específico da Justiça do Trabalho (Os Novos Desafios da Justiça do Trabalho).

Paralelamente ao estudo do judiciário, as ciências sociais vêm enfocando a diminuição ou apenas transformação da importância do trabalho, principalmente como meio de acesso à cidadania. Vários estudos (Gorz, Rifikin, Habermas, Offe, etc) procuraram demonstrar que o trabalho deixou de ter a importância dada por Marx e Weber. Alguns teóricos deram mais realce ao contexto do que chamam de do “póscapitalismo/moderno/ fordismo/industralismo, como os estudos de Bell, Guiddens, Masi, Boaventura Santos, Harvey. As ciências sociais no Brasil vêm desenvolvendo estes enfoques (Fridman, Faria, Gorender), alguns de forma crítica (Antunes, Demo, Laino).



5.      Absenteísmo dos juízes (Uma avaliação da década de 90)



Quando falamos dos juízes devemos distinguir os da cúpula dos do primeiro grau. Na década de 90 tivemos uma clara tendência no TST de evitar julgamentos. Esse absenteísmo da cúpula ocorreu sob influência neoliberal de reduzir direitos. Parte das bases do judiciário trabalhista sofreu esta influência, mas de forma deturpada. Mais por força de comodismo, para reduzir a tarefa de ter que instruir e julgar, em parte fruto do ingresso de juízes que fazem concursos públicos  mais motivados pelo desemprego e não por vocação.

Na década de 90 prevaleceu no TST a opinião de que ele não deveria “criarnovos direitos, embora a lei e a Constituição Federal lhe conferisse tal poder. O aumento de direitos é visto como incentivo à perda do emprego e piora das condições de vida. É nesta conjuntura que a própria Justiça do Trabalho tem sua existência questionada.

Episódio de grande repercussão, inclusive na imprensa, ocorreu a criação do Enunciado 330 do TST, em sua primeira redação, de 18.2.94, quando considerava a homologação sindical no termo de rescisão do contrato uma quitação com efeito liberatório. Isso recebeu forte reação dos sindicatos, da opinião pública e da mídia, o que levou o TST a recuar em parte, permitindo as ressalvas feitas pelo trabalhador. Muitos juízes de primeiro grau, no entanto, não acataram o Enunciado. Mas os que aceitaram, tiveram seu trabalho facilitado, dispensado de ter que enfrentar a análise de provas.

Outra medida de cerceamento de acesso ao judiciário foi a criação da Instrução Normativa n.4 de 08.08.93 (revogada em março de 2003) que, a título de uniformizar o procedimento de dissídio coletivo, veio a exigir uma série de formalidades para o ajuizamento da ação, muitas quase impossíveis de serem cumpridas. Com isso iniciou uma triste situação em que quase todos dissídios coletivos foram extintos sem julgamento do mérito, o que entre os operadores do direito passou a ser chamado de extermínio de ações.

O próprio TST fez um projeto, que foi aprovado, de criação de comissões de conciliação prévia, que obriga o autor da ação passar por ela. É o fortalecimento de instância extrajudicial, o afastamento do trabalhador da Justiça e a diminuição das ações, embora o resultado possa ser pior para a parte mais fraca. A não passagem pela comissão leva muitos juízes a extinguir o processo sem julgar o mérito. Outros resistem a própria norma, por considerá-la inconstitucional.

Outra modificação, mais específica do processo, surge com o procedimento sumaríssimo para ações menores de 40 salários mínimos, mas com regras extremamente rígidas e formais, o que também leva os juízes preocupados em diminuir seu trabalho de instruir, a extingui-los sem julgar o mérito.

As estatísticas mensais realizadas pelo Tribunal vieram a demonstrar o exagero por parte de alguns juízes em extinguir de plano os  processos por não cumprirem algumas formalidades, alguns até condenando os reclamantes em custas. Isso levou a ACAT (Associação Carioca de Advogados Trabalhistas) a fazer uma campanha contrária, formalizando pedido de providência junto ao Corregedor do TST, que chegou formalmente a reconhecer o problema.  Por sugestão do Corregedor do TST, o Corregedor do TRT/RJ e o Presidente do TRT/RJ fizeram um Provimento, de n.01 de 14.07.2003, determinado que todos processos extintos sem julgamento do mérito sofrerão compensação. Isso significa dizer que esse tipo de sentença não será considera na estatística para efeito de distribuição, ou seja, o juiz receberá outro como se não tivesse julgado.

tendência de se estudar a Justiça do Trabalho por meio de quantidade de ações, mas pouco se tem analisado as partes do processo (jurisdicionados). Sadek (O Judiciário e a Prestação de Justiça, 1997, p.40) ressalta, por exemplo, que há “poucos procurando muito e muitos procurando poucos”, com aumento de demandas em certas fatias da população. Dessa forma a instituição seria muito procurada por aqueles que sabem tirar vantagens. Embora a autora se refira à Justiça comum, a observação parece adequada também para Justiça do Trabalho. Algumas análises apontam para o fato do empregador preferir pagar na Justiça, com valor mais baixo obtido através de acordo, o que também aumentaria o número de processos (Amadeo & Camargo, 1996). Esta tese vem recebendo crítica (Cardoso, 1999 e 2002).

No período dos 30 anos gloriosos, era tradicional a visualização dos jurisdicionados da Justiça do Trabalho em dois grandes pólos: o forte e o fraco.  Pelo lado do empregador, as grandes empresas semi-instituições, concentradas em grandes locais de trabalho, muitas com regulamentos próprios, sob influência da doutrina institucionalista. Pelo lado do empregado, visualizava-se o proletariado urbano e os empregados do setor terciário, que realizavam trabalho coletivo, grande parte representada por sindicatos. A finalidade de trazer para dentro das instituições oficiais os conflitos reivindicativos de classe era evidente. A pacificação social realizada pela Justiça do Trabalho era emblemática, tanto no nível das ações individuais como coletivas.

A mudança do mundo do trabalho e o questionamento feito à Justiça do Trabalho na década de 90 vieram a criar uma nova relação entre a instituição e os jurisdicionados. Há muito que a Justiça do trabalho é chamada nos meios forenses de “justiça dos desempregados”, sendo um dos principais órgãos públicos que atende o desempregado. Desde o fim da estabilidade decenal, com o surgimento do FGTS, que o trabalhador costuma buscar os préstimos da Justiça do Trabalho após a sua demissão. Exceção existe com as ações ajuizadas pelos sindicatos, sejam os dissídios coletivos ou as ações que atuam como substituto processual dos trabalhadores da ativa.

O que se desenha a partir das mudanças do mundo do trabalho, é diferente. Acresce o número de trabalhadores precários, semi-informais, trabalhadores de cooperativas fraudulentas ou de alguma empresa interposta, que não produz, apenas negocia mão-de-obra, geralmente sem capital, sem máquinas, algumas por terem ganhado uma licitação. Dentro da classe trabalhadora, aumenta os conhecidos colarinhos brancos (Wright Mills, 1969), intensificando o desnivelamento salarial entre trabalhadores, a ponto de alguns sociólogos questionar a tradicional luta de classe em prol de uma nova aliança entre trabalhadores privilegiados e o capital contra os decartáveis (Claus Offe,1991; Faria,1995), uma espécie de lúmpem moderno ou apenas excluído social. A aversão que os colarinhos brancos tinham pelo trabalho era analisada por W.Mills na década do 50 nos Estados Unidos, que demonstrava a busca por novos valores, como o tempo livre.

Outros atendidos pela Justiça do Trabalho são os trabalhadores de classe média, como bancários e empregados de estatais. Estes, muitas vezes buscam interpretações judiciais ousadas, teses voltadas para matéria de direito ou aplicação extensiva do princípio isonômico e de outros direitos constitucionais programáticos, elaboradas em laboratórios especializados de advocacia. Essesdireitosraramente chegam aos trabalhadores mais humildes. Estes avolumam a Justiça do Trabalho com ações de horas extras, fruto da exploração mais bruta (mais valia absoluta). Na década de 90 aumentaram as formas de entendimentos jurisprudenciais, principalmente as chamadasorientações jurisprudenciais” das duas seções do TST (a de direito coletivo e a de direito individual).

A campanha de acesso à justiça (Cappelletti/Garth, 1989), apesar de muito bem aceita entre os operadores da Justiça do Trabalho, não levou necessariamente novas camadas a ajuizarem ações, como o caso dos trabalhadores informais que não possuem empregadores, a base de 25,53 (IBGE,1999). Também, os trabalhos com objetos ilícitos, os sem concurso público obrigatório ou mesmo os trabalhadores menores de 16 anos, os aprendizes, estagiários, têm o acesso restrito ou mesmo vedado por tais contratos serem considerados nulos. Várias leis ainda procuram negar a caracterização do vínculo empregatício, como cooperados (Lei 8994/94), trabalho voluntário (Lei 9.608/98), cabo eleitoral (art.100 da Lei 9.504/97), reduzindo o acesso, e em parte atingindo o próprio direito material dos trabalhadores.

Aqueles que defendem modificações no próprio direito do trabalho, para incluírem outros trabalhadores que não os empregados, indiretamente propugnam para ampliação do acesso à Justiça do Trabalho. Refiro-me, principalmente, às teorias francesas, como as elaboradas pela Comissão Boissonnat de 1995 e pela Comissão Supiot de 1999, que procuram de alguma forma salvar o Estado providência.

Vemos, assim, que o acesso à Justiça do Trabalho e as futuras configurações dos jurisdicionados, recebem influência direta do direito material, dos direitos efetivos, dos “falsosdireitos (ver adiante), da informalidade. Paralelamente, há a possibilidade do próprio tribunal do trabalho criar entendimentos favoráveis aos trabalhadores, com interpretações extensivas da lei a seu favor. É o que Paoli (1994) chama de doação de direitos feita pela Justiça do Trabalho. Para autora, os rituais da justiça trabalhista criaram uma multidão de cliente dos direitos e não de cidadão.

Mesmo sendo mantidos os tradicionais litigantes (empregado e empregador), o aumento ou diminuição de direitos influenciam na busca dos serviços judiciários. Refiro-me a “institutos jurídicos”, que não necessariamente correspondem à justiça distributiva. Muitos mecanismos são transformados em lei, por vezes em benefício do próprio empregador ou de terceiros, mas que geram obrigações sujeitas a serem discutidas no Judiciário. Neste âmbito estão os vales transportes, vales refeições, planos de assistência de saúde, criação de fundações de previdência privada, seguro desemprego, etc, que vêm aumentando gradualmente. No computo geral não correspondem ao aumento remuneratório direto, mas a exigências do próprio mercado e urbanização. São direitos “falsos”, por não corresponderem a aumento do patrimônio, as vezes até diminuem o patrimônio com gastos de dinheiro e tempo para sua “aquisição”.

O aumento do acesso à Justiça do Trabalho pode corresponder a aumentos de vantagens efetivas, ou a mera tentativa de recuperar perdas de direitos praticadas pelo empregador. Ainda existem os casos de leis e regulamentos que são criados com regras difíceis de serem cumpridos, e que logo sugerem demandas judiciais. A burocratização do direito gera mais burocratização, com a intervenção do judiciário apenas para evitar abusos ou inoperância da efetivação dos direitos, muitas vezes sequer conseguindo este objetivo. Isso propicia uma ciranda de ações judiciais, típica de vicioso. É o que  se pode chamar de inflação de ações

O acesso  incentivado e facilitado ao judiciário trabalhista correspondeu mais à necessidade política de prestar contas à opinião pública, do que criar um novo acesso à riqueza e à cidadania com direitos positivos, embora se tenha aumentado os “falsos” direitos (simbólicos), com siglas e formulários. No caso do direito do consumidor, aumentaram os direitos contratuais (código do consumidor). O contrato de trabalho cede espaço para o contrato de consumo, e o código do trabalho para o código do consumidor. Mas mesmo aqui não se aumentou o consumo da população, havendo o mesmo paradoxo, mas com a diferença de ter um sabor de conquista em função de melhores garantias contratuais (ônus da prova, responsabilidade do fabricante, etc).

No caso das relações de trabalho, pretendeu-se aumentar o acesso para atendimento das pretensões contratuais trabalhistas, mas num cenário de diminuição de empregos sólidos e de enfraquecimento dos sindicatos. Contrariamente ao caso do consumidor, as negociações individuais e coletivas dos trabalhadores ganharam conotação de flexibilização, onde prevalecem a renúncia individual ou a formação de cláusulas coletivas in pejus. E isso também não deixou de ser uma herança da Carta de 88 quando permitiu a redução salarial por meio de acordo coletivo.

O poder judiciário trabalhista passou a homologar perda de direitos, embora sob justificação de garantir empregos. Aliás, esse processo começa pelos sindicatos, com os próprios representantes dos trabalhadores, quando aceitam cláusulas in pejus.  Mas muitos esperam, que essas negociações afastadas do protecionismo estatal venha a fortificar a cidadania ativa e a autonomia e pluralismo sindical. Neste sentido, existem as teorias contrárias ao voluntarismo político dos magistrados e dos membros do Ministério Público (ver Arantes, 1999, Maciel e Koener, 2002, Habermas, 1997, Garapon,1996). Esses pontos de vista sem dúvida influenciaram a Justiça do Trabalho, principalmente a sua cúpula.

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[2] Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense, Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD-UFF), Doutor em Ciências Humanas (UFRJ), Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais (UFF), Juiz do trabalho titular da 5ª Vara do Trabalho de Niterói-RJ