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Artigo - Flexibilização: Poder sindical

FLEXIBILIZAÇÃO: PODER SINDICAL
IVAN ALEMÃO
(resumo da palestra do dia 29.09.2012 proferida no EMAT – Encontro dos Magistrados da 1ª Região, organizado pela AMATRA1, realizado Vassouras – RJ)
O direito do trabalho foi constituído a partir da junção do direito corporativo com o direito civil contratualista. Se num plano histórico houve conflito entre ambos, o que contribuiu para o advento da Revolução Francesa, com seu Código de igualdade jurídica entre os cidadãos, no final do século XIX e mais especificamente a partir da segunda década do século XX houve uma confluência de interesses, incluindo-se neste rol os direitos coletivizados de grupos sociais. Mas essa junção não ficou imune a dissensões.
No Brasil, essa união ocorreu de forma mais clara durante o Estado Novo: numa primeira fase, deu-se maior destaque a corporações; numa segunda, ao contratualismo, a partir da CLT. Oliveira Vianna, ao verificar o atraso brasileiro na formação de grupos profissionais que pudessem criar regras próprias, fenômeno chamado por ele de insolidarismo, defendeu uma maior atuação do Estado nessa empreitada. Tivemos, então, um sistema em que bastava o trabalhador ser contratado para estar enquadrado em alguma categoria com representação sindical e inserção em um determinado instituto de aposentadoria e pensão. A legislação do trabalho surgiu por meio da legislação da previdência social, com regras de rescisão de contrato e estabilidade. Essa era uma condição essencial para manter o trabalhador “preso” ao instituto em que pretendia se aposentar.
A partir de 1943, com Oliveira Vianna fora do cenário, prevaleceu a tendência institucionalista-contratualista e se elaborou a CLT como um desmembramento do Código Civil, transformando-se o antigo contrato de locação de serviços em algo mais autônomo e regulamentado, adicionado às leis já existentes sobre contratos e sindicatos. As regras de 1939 do tempo de Vianna, sobre sindicatos e Justiça do Trabalho, foram inseridas na CLT como capítulos à parte. O direito do trabalho passou a ser mais contratualista, saindo do âmbito do direito público para o privado. E os próprios sindicatos foram forçados a negociar num sistema social em que a greve era proibida.
A proibição da greve incentivou a negociação coletiva enquanto norma jurídica, o que era desconhecido do sindicalismo. Este impunha sua força no mercado de forma violenta, disciplinando a concorrência entre os próprios trabalhadores e impedindo alguns de venderem sua força de trabalho abaixo do preço estipulado, numa época em que os acordos sindicais seguiam regras de direito individual e não propriamente coletivo, como hoje compreendemos. O direito coletivo começava a ganhar contornos e, ao lado do direito individual, a formar a base central do direito do trabalho.
Consolidou-se, assim, a chamada Era Vargas. Com o advento da democracia, em 1945, esperou-se um grande revés, embora efêmero. O presidente interino, José Linhares, chegou a revogar o imposto sindical e a representação ampla dos sindicatos (Decretos-Leis nºs 8.739 e 8.740, ambos de 19/1/1946), mas as referidas leis logo foram “tornadas sem efeito” sob a égide do governo Dutra (Decreto-Lei nº 8.987-A, de 15/2/1946). Isso significou para o sindicalismo o continuísmo da Era Vargas.
A novidade fundamental no final do Estado Novo foi a maior democratização, fruto da americanização do país. No plano trabalhista houve mais liberdade de greve, embora a intervenção do Estado ainda permanecesse quase com a mesma intensidade, inclusive com o Ministério do Trabalho podendo estender os acordos coletivos, fiscalizar e punir sindicatos e interferir até mesmo no enquadramento sindical.
No entanto, longe de a Era Vargas ter vida longa, como muitos destacam, a meu ver de forma equivocada, a ditadura militar implantada em 1964 mudou significativamente o panorama econômico e trabalhista brasileiro. Os institutos de aposentadoria e pensões corporativos vinham acumulando enorme capital com destinação a aposentadorias que não teriam retorno lucrativo e, portanto, vinham investindo em habitações populares ainda que com pouca lucratividade. A ditadura militar cria o BNH, a correção monetária para financiamento a logo prazo (ORTN) e o FGTS enquanto poupança forçada. Unifica a previdência social, instituindo o INPS, acabando com os IAP, e, como consequência, também com a estabilidade, que perdera seu sentido de ser com a própria unificação. Esse novo sistema previdenciário e de atendimento médico permite maior rotatividade de mão de obra, impulsionado pelo mercado de trabalho, incrementado pelo vultoso investimento na construção civil, forjando a casa própria para a classe média e dinamizando o sistema financeiro e bancário. Agora o trabalhador doente, inválido, aposentado, passaria a participar da previdência social independentemente do empregador que tivesse, ou seja, do enquadramento sindical ou profissional em que estivesse alocado.
No âmbito legislativo, a ditadura propiciou os contratos a curto prazo, como o de experiência e o de estágio para todos os cursos (só existia o da OAB); afastou dos sindicatos as agências de emprego e criou o Departamento Nacional de Mão de Obra, privatizando a recolocação de desempregados no mercado e abrindo espaço para a efetiva intermediação com o trabalho temporário instituído pela Lei nº 6.019, de 1974. Por fim, a Lei nº 4.923, de 1965, propiciou a flexibilização propriamente dita, com a redução de salários por meio de negociação coletiva.
O cenário criado pela ditadura antecedeu questões que na Europa só seriam discutidas na década de 1980, após a grande crise do petróleo, quando o incremento de sucessivos contratos a prazo enfraqueceria as regras de vedação à dispensa arbitrária da Convenção 158 da OIT. No âmbito sindical brasileiro, os líderes incômodos foram afastados, presos ou perseguidos, e incentivada uma nova geração de sindicalistas aptos a negociar de forma sazonal em decorrência das datas-bases. Efetivamente se consolidou a representação jurídica dos sindicatos, inclusive sobre todos os membros da categoria, alterando-se o antigo art. 612 da CLT, que limitava a representação aos sócios, muito embora, como dissemos, o Ministério do Trabalho pudesse estender a norma. Essa é uma longa discussão que não será tratada aqui, mas o fato é que a ditadura aumentou o poder de representação jurídica dos sindicatos, que sobreviveu até mesmo às contestações sindicais do final do regime militar e persiste até hoje. Aliás, esse é um assunto que sequer faz parte da pauta de debates atuais, mas não deixa de ser um problema, com a flexibilização e suas cláusulas in pejus.
Com o fim da ditadura e a criação da Assembleia Constituinte, em 1988, um segundo ou terceiro passo foi dado contra a herança de Vargas no plano sindical. Em primeiro lugar, o Poder Executivo se desvincula totalmente do gerenciamento da estrutura sindical. E não se diga que houve apenas uma transferência para o Poder Judiciário, já que este não gera a estrutura sindical, apenas dirime e julga as lides que lhe são encaminhadas, sem nenhuma continuidade administrativa.
No que se refere ao trabalhismo, a Constituição Federal de 1988 foi a Carta do sindicalismo, que, como todos sabem, vivia o auge da combatividade a partir da grande greve do ABC. Além do afastamento do Poder Executivo sobre as questões sindicais, a Carta de 1988 criou a exclusividade de os sindicatos negociarem, acabando com as brechas de negociação por meio de grupo de trabalhadores (art. 617 da CLT) ou de transferência à Justiça do Trabalho de algumas decisões dessa natureza, como previa a já referida Lei nº 4.923/65. Manteve-se a unicidade sindical, que, não se pode esquecer, representa poder dos sindicatos. Garantiu-se a representação ampla do sindicato e a estabilidade de seus líderes. Deu-se poder a eles para indicarem representantes em todos os órgãos colegiados instituídos pelo governo que tratam de seus interesses profissionais ou previdenciários. A Carta de 1988 é omissa quanto à democracia sindical, e o poder indicação de representantes prevista no art. 10 da CLT, não vem sendo feita de forma democrática, inclusive como determina a Convenção 144 da OIT, ratificada pelo Brasil em 1998. O art. 11 que trata do representante eleito e não sindical, do tornou letra morta, embora a Convenção 135 da OIT, ratificada pelo Brasil em 1991, lhe dê garantias. Criou-se a possibilidade de contribuição confederativa sem que esta precisasse ser precedida de negociação. Neste tema é que, isoladamente, há referência à assembleia, algo próximo da democracia sindical. Ampliou-se o direito de greve e manteve-se o reconhecimento das normas coletivas.
A possibilidade de flexibilização surgiu pela primeira vez em âmbito constitucional, ainda como poder dos sindicatos. Não houve nenhuma contestação contra esse preceito. Os trabalhistas lutaram pela estabilidade no emprego e foram derrotados. No âmbito contratualista, a Constituição de 1988 foi extremamente tímida. A extensão do FGTS a todos os trabalhadores era algo inevitável, pois o empregador já era obrigado a depositar o FGTS tanto dos optantes como dos não optantes. O aumento do prazo da prescrição favoreceu basicamente os demitidos que ajuízam suas ações, mas apenas aqueles de contratos acima de dois anos, pois para a grande massa de trabalhadores rotativos a norma não fez diferença.
A Carta de 1988 manteve aqueles direitos já consagrados, de certa forma, desde 1934, “inovando” com algumas regras programáticas, como a vedação à dispensa arbitrária nunca regulamentada, assim como a proibição de retenção salarial, temas suscetíveis a debates, mas sem eficácia imediata. O aviso prévio proporcional só recentemente foi regulamentado, e sem qualquer impacto econômico. O salário família, com o tempo, praticamente acabou; o seguro desemprego foi regulamentado de forma restritiva, não servindo para os pequenos contratos, que predominam no território nacional. Apenas alguns direitos para alguns setores específicos foram abraçados, como os de domésticos, gestantes, avulsos, rurais, mas de forma ampla a Carta não inovou. Pelo contrário, até chegou a criar uma camisa de força, como no caso da vedação à dispensa arbitrária e do ônus da culpabilidade do acidente de trabalho. Vitória propriamente dita para os contratualistas foi a jornada de 44 horas, sem dúvida a decisão de maior importância histórica, o adicional de 50% de horas extras, os 40% do FGTS. Principalmente os dois últimos itens são conquistas que só têm impacto imediato, pois aos poucos o mercado se equilibra, os empresários repassam os custos para o consumidor ou até mesmo mantêm os salários sem aumento.
O que sucedeu, no entanto, após alguns anos da promulgação da Carta de 1988, foi o combate intenso ao movimento sindical, que manteve, além da tradicional luta economicista por melhores salários, a luta contra a privatização, agora com forte participação dos trabalhadores de estatais e de classe média, que se viam prejudicados. Tais trabalhadores, que se sentiam sem patrão, pertencentes à organização da nação, se viram descartados por novas regras de mercado privado e extremamente liberal. Os governos federais, o legislador e a cúpula do judiciário trabalhistas procuraram com sucesso enfraquecer os sindicatos, seja com a criação da MP da greve, que se transformou em lei, retomando os princípios básicos da lei da ditadura de ilegalidade de greve, seja não regulamentando satisfatoriamente o registro sindical e criando conflitos entre entidades afins. Além disso, as contribuições confederativas, praticadas por muitos sindicatos de forma abusiva, foram combatidas, e aceitou-se que o MPT representasse os trabalhadores em diversas questões que eram exclusivas dos sindicatos por meio de substituição processual, além de esse próprio Ministério ser ao mesmo tempo os autores dos dissídios de abusividade de greve. Fora isso ainda se restringiu a instauração dos dissídios coletivos, antes mesmo da EC 45, e limitou-se a quantidade de diretores sindicais em sete, como previsto na CLT. O sindicalismo brasileiro intensificou sua atuação neocorporativista, atuando em órgãos paritários de influência na economia, na gestão do FGTS, FAT e outros órgãos geralmente vinculados ao Ministério do Trabalho, sem processo eleitoral, como já comentado. A força dos sindicatos passou a ter raízes na própria estrutura do Estado, mais do que nas “bases”, sonhadas pelos sindicalistas da década de 1980.
Ainda nessa década, o “negociado acima do legislado” era uma clara manifestação da vontade dos sindicatos. Como dito, a regra de redução salarial por meio de acordo coletivo não foi contestada. Aliás, a flexibilização é um poder sindical, o que muitos podem não perceber, principalmente aqueles mais voltados para o aspecto contratualista do direito do trabalho. Na década de 1980 a CUT buscava criar o contrato coletivo de trabalho como uma forma de impor a força sindical sobre os ditames do governo autoritário e os patrões. Uma espécie de direito extraestatal nos moldes de Gurvitch era um sonho realizável para muitos. Com o advento do Plano Cruzado, diversos sindicatos buscaram na Justiça do Trabalho a prevalência das cláusulas coletivas que possuíam gatilho salarial, mesmo em época de congelamento de preços. Essa tendência chegou a ser expressa em lei salarial (Lei nº 8.542/92, art. 1, §1º). Não que se quebrasse aqui a hierarquia entre lei e norma coletiva, mas aquela passava a ter gosto de lei dispositiva, não mais imperativa, nos moldes das regras civilistas sobre contratos: estes valem desde que as partes não tenham negociado de forma diversa.
Já na década de 1990, quando a correlação de força estava bem invertida, com o sindicalismo fraco, principalmente após a greve dos petroleiros de 1995, os advogados trabalhistas deram início à campanha contra o “negociado acima do legislado”, agora defendido por neoliberais como forma de flexibilização. É bem verdade que os vários projetos nesse sentido não foram aprovados, salvo algumas poucas regras, como a do banco de horas. Aliás, a Lei nº 9.601/98, que alterou o §2º do art. 59 da CLT, é oriunda de um projeto de lei que surgiu contra uma decisão do TST, que julgou nulo um acordo coletivo de banco de horas feito em São Paulo.
A flexibilização vem sendo implementada efetivamente por meio de cláusulas in pejus, que enquadram categorias inteiras no art. 62 da CLT, excluindo-as das regras de duração do trabalho. Permitem descontos salariais quando há devolução de cheques de clientes e supressão de intervalos, como a dos motoristas, reduzem percentual de periculosidade etc.
O aumento das cláusulas in pejus contribui, também, para a indignação de muitos trabalhadores contra suas entidades representativas, que buscam mesmo delas se libertar. Não é à toa que, de uns tempos para cá, percebemos que as normas coletivas deixaram de ser juntadas com a peça inicial e passaram a ser anexadas à peça de contestação. O reclamante, surpreso, procura de alguma forma alegar que não está vinculado a determinado sindicato, ou então alega nulidade de cláusula coletiva.
A hipótese de o Judiciário anular cláusulas era algo visto com bastante antipatia, pois enfraquece a negociação coletiva. Na verdade, essa discussão já existia com a própria homologação de contratos coletivos pelo Poder Executivo ou Judiciário. Para Russomano, que sequer aceitava homologação de acordo individual, um acordo era comparado a um tabuleiro de xadrez em que uma pequena mudança altera todo o resultado. Outros entendiam que a cláusula coletiva só poderia ser anulada por meio de dissídio coletivo de natureza jurídica. Hoje, principalmente após o advento da OJ 342 da SDI-1 do TST de 2004 (refiro-me à redação original), firmou-se com mais clareza a possibilidade de o juiz em ação individual anular cláusulas coletivas por entender que alguma norma legal imperativa foi ferida. Não critico essa hipótese, principalmente quando se trata de cláusula que fere norma relacionada com a saúde, mas também é verdade que essa nulidade de cláusula isolada parte, invariavelmente, de uma análise isolada de negociação na qual não se leva em conta o conjunto da negociação coletiva. Sequer a leitura integral do acordo coletivo é suficiente para sabermos o significado efetivo de uma cláusula, pois o que nada significa para alguém de fora pode significar muito para os negociadores.
Daí eu entender que o Judiciário não está devidamente preparado para anular cláusulas coletivas em reclamações individuais, tal a ausência de informações e análises sobre o resultado da negociação. Nem sempre há clareza sobre o que é ou não legal. A expressão salário, prevista na Carta para flexibilização, se traduzida à luz do art. 475 da CLT, significa quase tudo que é contraprestação.
Também é verdade que alguns sindicatos pactuam acordos coletivos e depois incentivam seus representados a requerer na Justiça a ineficácia das cláusulas que lhes foram desfavoráveis, o que demonstra que as regras negociais ainda estão institucionalmente bem abaixo do que se poderia esperar. A judicialização, nesse caso, vem complementando o ambiente da negociação coletiva, podendo até mesmo o Judiciário ser “usado” em sua obrigatória imparcialidade, o que, para os de fora, pode parecer ingenuidade.
É certo que esse ambiente de flexibilização, do negociado sobre o legislado, vem recebendo forte crítica dos contratualistas, substancialmente de advogados de reclamantes, doutrinadores e professores que veem no Código do trabalho a regra maior do contrato individual, sendo que nos últimos tempos chegamos mesmo a adotar um certo conservantismo de esquerda, receoso de qualquer alteração legal. Incluo-me nesse rol, mas não deixo de me sentir constrangido por reduzir o grau de proposição típico dos progressistas. O direito do trabalho deve ser modificado paulatinamente, assim como é alterada a nossa sociedade. Não podemos ficar presos a eras passadas, perder o medo e encarar o futuro, mesmo com os nossos erros.