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Artigo: O Direito do Trabalho no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial

O DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL – comentários sobre a justa causa de um empregado germanófilo[1]
Como seria o Direito do Trabalho num estado de guerra? Até que ponto os direitos individuais, sociais e políticos são sacrificados numa época de guerra? Apresentamos um fragmento histórico que propiciará uma reflexão histórica.
Trata-se de um acórdão do Conselho Regional do Trabalho, do Rio da Janeiro/Espírito Santo, nos autos do processo n. 177 de 30 de abril de1943, um dia antes da promulgação da CLT. O acórdão trata da autorização para dispensa de um empregado alemão acusado de ser germanófilo exaltado, quer dizer simpatizante do nazismo.
 
 
PROC. CRT-177/43
A/281/43
A C Ó R D Ã O
É de se autorizar a dispensa de empregado estável, quando apurado em inquérito administrativo regular, ser perniciosa a boa marcha do serviço e oferecer perigo aos superiores interesses da defesa nacional sua permanência em cargo estritamente ligado à navegação mercante das nações aliadas do Brasil no presente conflito mundial.
Competência - Nos termos expressos do art. 8º, do decreto-lei 4.638, de 31 de agosto de 1942, é competente a Justiça do Trabalho para conhecer dos dissídios oriundos da necessidade da dispensa de empregado considerado nocivo ao bom andamento dos serviços, ao interesse coletivo ou a segurança pública.
 
Vistos e relatados os presentes autos do inquérito administrativo instaurado a requerimento de A. Jabour & Cia. contra seu empregado Hans Otto Julius Urban, instruído na 6ª Junta de Conciliação e Julgamento do Distrito Federal:
CONSIDERANDO que está abundantemente provado nos autos que o reclamante Hans Otto Julius Urban, filho de alemães e, malgrado seu nascimento no Brasil, sempre manifestou inequivocamente sua vontade de ser alemão segundo a lei alemã, que regula a aquisição da nacionalidade alemã;
CONSIDERANDO que além de ter sido educado na Alemanha e feito a guerra de 1914 combatendo nas fileiras do Exército Alemão, depois de seu regresso ao Brasil, em 1919, o acusado nunca se integrou no meio social brasileiro, tanto assim que contraiu núpcias com mulher alemã nata, declarou-se alemão ao contrair aquelas núpcias e viajou em 1929 para a Alemanha com um passaporte fornecido pelo consulado alemão e no qual se declarava ser ele alemão;
CONSIDERANDO que não só pelas próprias declarações do acusado, mas também pelos depoimentos das várias testemunhas que depuseram no processo, verifica-se ser o acusado nazista e germanófilo exaltado, sempre discutindo e se vangloriando dos feitos das armas alemãs sobre as Nações unidas;
CONSIDERANDO que o acusado desempenhava na firma reclamante o lugar de encarregado da exportação de café, estando assim, portanto, estritamente ligado ao movimento de embarque e desembarque de café, entrada e saída de navios, além de se tornar conhecedor da correspondência internacional mantida pela firma exportadora com as praças importadoras de outros países aliados do Brasil na guerra contra o Eixo;
CONSIDERANDO assim que a permanência do acusado no lugar que ocupa, estando o Brasil em guerra contra o Eixo, além de prejudicial ao bom andamento dos serviços, dado à animosidade fatal existente entre o empregado nazista e os demais empregados brasileiros, oferece também perigo ao interesse coletivo e à segurança da navegação brasileira e aliada, sendo público e notório que toda a trama da espionagem nazista recentemente desmanchada pela polícia brasileira, assentava-se justamente sobre as atividades dos alemães nascidos no Brasil ou naturalizados brasileiros pela consequente maior liberdade de movimento de que dispunham, e girava quasi que inteiramente sobre o movimento de navios em portos brasileiros;
CONSIDERANDO mais que o decreto-lei 4.638, de 31 de agosto de 1942, que veio trazer justamente uma solução para casos como este onde se torna indispensável acautelar a produção contra a prática de atos prejudiciais ao bom andamento dos serviços, ao interesse coletivo, ou à segurança pública, deu à Justiça do Trabalho, em seu artigo 8º, a necessária competência para dirimir os dissídios oriundos de sua aplicação;
CONSIDERANDO ainda que aos Tribunais brasileiros do trabalho, dada à sua própria qualidade de tribunais estreitamente ligados aos meios produtores, compete a responsabilidade de velar pelos superiores interesses da economia e pela própria segurança do Estado, estando a nação em guerra;
CONSIDERANDO que está fartamente provado nos autos ser Hans Otto Julius Urban elemento inteiramente suspeito, pois, embora nascido no Brasil, foi educado na Alemanha e lá prestou seu serviço militar, na guerra de 1914, é inteiramente radicado ao meio alemão, sempre se disse alemão, e é nazista exaltado, de todos reconhecido;
CONSIDERANDO que o mesmo Inquérito obedeceu as instruções contidas no decreto 6596, de 12 de dezembro de 1940;
CONSIDERANDO o mais que dos autos consta;
ACORDAM os membros do Conselho Regional da 1ª Região da Justiça do Trabalho, em conhecer do Inquérito para autorizar a firma empregadora a dispensar o seu empregado Hans Otto Julius Urban, como medida de prudência e no superior interesse da Pátria Brasileira, em estado de guerra, com III Reich Alemão.
Rio de Janeiro, 30 de abril de 1943.
 
 
 
Alguns considerandos formais sobre o acórdão
Quem hoje lê essa decisão judicial percebe logo o estilo da fundamentação. Depois de tantos considerandos é sumariamente produzido o resultado.  Na verdade, os considerandos são a própria análise dos fatos, das provas, e a própria fundamentação, embora misturados. O processo havia sido instruído numa Junta de Conciliação e Julgamento, com vários depoimentos testemunhais.  
Interessante que os “vistos e relatados...” são bem antigos, mas isso não implicou em apresentar o acórdão de forma mais esquematizada, como as de hoje em dia. No entanto, a decisão foi bem fundamentada.
Tratou-se de um inquérito administrativo instaurado pela empresa. A estabilidade e os inquéritos administrativos foram criados pelos Institutos de Aposentadoria e Pensão de cada categoria. Com o surgimento da Justiça do Trabalho, os inquéritos (ainda chamados de administrativos) formam transferidos para a Justiça do Trabalho, conforme Decreto-lei n. 1.237 de 2.5.1939, que criou a Justiça do Trabalho, e o seu Regulamento, citado no acórdão, de n. 6.596 de 12.12.1940.
A CLT viria a regular o tema de forma geral, com o nome de inquérito para apuração de falta grave (arts.853/855). Esse inquérito judicial existe até hoje, embora apenas para o caso de estabilidade de diretores sindicais (Súmula 197 do STF). É a única ação da CLT em que o autor é o empregador.
Mas como veremos a seguir, foi criado um tipo de inquérito para dispensa sem necessariamente o empregado ter cometido falta grave.
O Conselho Regional do Trabalho era o órgão regional apto a julgar recurso, assim como no âmbito Nacional era o Conselho Nacional do Trabalho. Em 1946 foi o ano da integração da Justiça do Trabalho ao poder judiciário e também foram criados os Tribunais Regionais do Trabalho e o TST, certamente sob as mesmas bases dos antigos Conselhos e do CNT.
Alguns considerandos sobre a competência da Justiça do Trabalho e o mérito do acórdão
Como consta no acórdão, o empregado foi acusado de “oferecer perigo aos superiores interesses da defesa nacional”.
Como se observa, desde logo, não se trata de um empregado que tenha descumprido alguma obrigação contratual. É estranho, portanto, que a Justiça do Trabalho tenha apreciado tal questão, mais propícia para um Tribunal com conotação penal. Porém, como o acórdão informa, essa competência foi dada pelo art. 8º do Decreto-lei 4.638 de 31 de agosto de 1942.
Essa norma jurídica merece ser citada em sua íntegra. 
Decreto-Lei nº 4.638, de 31 de Agosto de 1942
Faculta a rescisão de contrato de trabalho com súditos das nações com as quais o Brasil rompeu relações diplomáticas ou se encontra em estado de beligerância, e dá outras providências.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, usando da atribuição que lhe confere o artigo 180 da Constituição,
CONSIDERANDO que a lei nº 62, de 5 de junho de 1935, que regula a rescisão de contrato do trabalho satisfaz plenamente seus objetivos, assegurando ao trabalhador ampla proteção ao seu trabalho e às empresas o direito de legítima dispensa dos maus empregados;
CONSIDERANDO, entretanto, que dadas suas finalidades de aplicação em períodos normais de atividade das classes produtoras, o citado diploma legal não previu certas e determinadas situações especiais, do mais alto interesse para a economia e a própria segurança do Estado, resultantes da situação internacional criada pela guerra;
CONSIDERANDO que para atender as necessidades do momento, nesta grave emergência para a Nação é indispensável acautelar a produção contra a prática de atos prejudiciais ao bom andamento dos serviços, ao interesse coletivo, ou a segurança pública,
DECRETA:

Art. 1º Fica facultado aos empregadores o direito de rescindir os contratos de trabalho com empregados estrangeiros, súditos das nações com as quais o Brasil haja rompido relações diplomáticas ou se encontre em estado de beligerância.
Art. 2º Para uso do direito facultado no artigo anterior, deverá o empregador, mediante requerimento, obter autorização prévia do Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, sendo lícito, desde logo, a suspensão do empregado.
Parágrafo único. O pedido de autorização deverá indicar nome, domicílio, estado, idade, profissão, nacionalidade, anos de serviço assim como idênticos dados referentes às pessoas dependentes de cada empregado.
Art. 3º Ao empregado cujo contrato de trabalho for rescindido na forma deste decreto-lei será paga uma indenização correspondente a meio mês de salário por ano de serviço ou fração superior a seis meses.
Parágrafo 1º Não serão computados, para efeito do cálculo das indenizações, as importâncias percebidas como salário mas excedentes de dois contos de réis por mês nem o número de anos de serviço que exceder de dez.
Parágrafo 2º O pagamento da indenização a que se refere o presente decreto-lei será feito obrigatoriamente em parcelas mensais e iguais, num total de mensalidades correspondentes ao número de anos de serviço computados para efeito do cálculo da indenização.

Art. 4º A prática de qualquer ato contrário ao bom andamento do serviço, da produção ou à segurança nacional é reputada falta grave para os efeitos de legislação vigente.

Art. 5º Aos contratos de trabalho a que se refere o presente decreto-lei não se aplicarão os dispositivos legais vigentes que assegurem aos empregados direito à estabilidade.

Art. 6º A cada empregado despedido nos termos do presente decreto-lei deverá corresponder a admissão de um empregado brasileiro, salvo exceção por motivo justificado comprovado perante a autoridade administrativa competente em matéria de trabalho com recurso para o Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio.
Art. 7º O pagamento das prestações de indenizações a que se refere o art. 2º cessará desde que fique provado ter o empregado demitido incidido na prática de ato contrário à produção ou à defesa nacional, ou desde que sejam os seus serviços aproveitados pelo governo em trabalho remunerado.
Art. 8º Os dissídios de trabalhos resultantes da aplicação do presente decreto-lei serão dirimidos pela Justiça do Trabalho.
Art. 9º O presente decreto-lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
 
  
Essa norma foi dirigida apenas a empregados estrangeiros, e de nações com as quais o Brasil rompeu relações diplomáticas ou se encontravam em estado de beligerância.
Inicialmente, observamos que o Decreto, em seu art. 1º, faculta ao empregador a rescisão do contrato de trabalho. Ora, é muito estranho que o “perigo aos superiores interesses da defesa nacional”, imputado ao empregado, fosse cerceado a partir da vontade do empregador. A repressão a quem ameaça a segurança nacional não poderia depender da vontade do empregador.
Na época já se encontravam em vigor a Lei de Segurança Nacional, e o órgão competente para julgar era o Tribunal de Segurança Nacional[2]. O art. 13 da Lei 136 de 14.12.1935, por exemplo, proibia a manutenção de funcionários ou empregados filiados a partido ou agremiação proibidos ou clandestinos, podendo até mesmo a empresa ser punica com cassação de subvenção.
O que queremos dizer com isso, é que a ingerência política  na relação de emprego já era possível, mas normalmente ela era feita pelo órgão governamental e não a critério do empregador, conforme consta no Decreto-Lei nº 4.638.
Esse Decreto estabelecia dois tipos de autorizações para o afastamento do empregado, com perda da estabilidade. No primeiro caso, não precisava o empregado ter praticado falta grave, apenas ser simpatizante do nazismo, mas o empregador precisaria de uma autorização do Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, oportunidade em que o empregado recebia uma indenização, semelhante a de qualquer empregado dispensado na época, porém com limite de base de cálculo. O segundo caso, é o da justa causa, quando então a motivação não era meramente ideológica, devendo mesmo interferir “no bom andamento do serviço, da produção ou à segurança nacional” (art.4º).
No caso do acórdão, houve o inquérito e a atividade do empregado foi considerada “contra o bom andamento dos serviços”. Portanto, tratou-se de confirmar a justa causa.
 
Alguns considerandos sobre a legislação do trabalho sob o estado de guerra
Nosso país passou por muitas ditaduras, mas muito pouco por estado de guerra. Embora o Decreto-Lei nº 4.638, de 31 de Agosto de 1942, seja dirigido apenas aos estrangeiros “inimigos”, a legislação da época da Segunda Guerra passou a ser extremamente restritiva de direitos trabalhistas.
Embora a Constituição em vigor já fosse bem restritiva quanto às liberdades individuais e políticas, pois vigia o Estado Novo, ainda houve a restrição dos direitos hoje chamados de sociais, assim como de liberdades individuais e políticas.
O Decreto n. 10.358 de 31.08.1942 veio a declarar estado de guerra em todo o território nacional. Ele é bem pequeno e merece ser citado em sua íntegra.
 
Decreto n. 10.358 de 31.08.1942
Art. 1º É declarado o estado de guerra em todo o território nacional.
Art. 2º Na vigência do estado de guerra deixam de vigorar desde já as seguintes partes da Constituição:
Art. 122, ns. 2, 6, 8, 9, 10, 11, 14 e 16;
Art. 122, n. 13, no que diz respeito à irretroatividade da lei penal;
Art. 122, n. 15, no que concerne ao direito de manifestação de pensamento;
Art. 136, final da alínea;
Art. 155, letras c e h;
Art. 175, primeira parte, no que concerne ao curso do prazo.
Parágrafo único – Ressalvados os atos decorrentes de delegação para a execução do estado do emergência declarado no artigo 166 da Constituição, só o Presidente da República tem o poder de, diretamente ou por delegação expressa, praticar atos fundados nesta lei.
Art. 3º O presente decreto entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
 
Ou seja, a Constituição Federal, no caso a de 1937, foi significativamente mutilada, especialmente sobre os direitos de cidadania.
Para nós, interessa a suspensão dos art. 137 e 138, que hoje equivaleriam aos arts. 7º e 8º da atual Carta.
O art. 137 era o da legislação do trabalho, que garantia entre outras coisas os contratos coletivos, o repouso semanal, as férias, a indenização, o salário mínimo, o adicional noturno, a proibição de trabalho de menor de 14 anos, a assistência, e o art. 138, é o que tratava da liberdade de associação profissional ou sindical.
Mozart Victor Russomano, em seu conhecido “Comentários à CLT”[3], ao tratar dos abonos (art. 457), lembra que o Decreto-lei n. 3.813 de 10.11.1941, “atentando para as necessidades do momento e, sobretudo, oriundas do estado de guerra em que o país estava mergulhado, determinou, expressamente, que os abonos não se incorporariam ao salário, em nenhuma hipótese. Aquele diploma tinha vigência transitória, o que acentua, ainda mais, sua natureza excepcional. Seu artigo único estipulava o prazo de eis meses para a aplicação de seus preceitos”.
Informa ainda, o ilustre jurista, que tal norma foi sendo prorrogada indefinidamente por outros decretos. Comenta, ainda que os abonos vieram a ser considerados como salários, mas ressalta as constantes controvérsias sobre o tema.
É interessante a conotação “em nenhuma hipótese”, o que parece ir contra a própria vontade do empregador. Também deve ser observado que este instituto, o abono, até hoje é polêmico quanto à sua natureza e incorporação nos salários.
Outros países talvez tenham sido mais generosos com os trabalhadores e talvez menos com os empregadores. Sandro-Passarelli[4], ao analisar o caráter contratual da relação de emprego, não deixa de ressaltar ela ainda existia quando o empregador era obrigado a contratar.
O autor afirma que a lei estabelece essa obrigação em alguns casos, e citava os de admissão dos mutilados e inválidos de guerra ou em serviço, órfãos, viúvas e parentes dos falecidos na guerra ou em serviço, sobreviventes de guerra e necessitados, em proporção ao número dos trabalhadores ocupados na empresa, além de um mínimo (Lei 375 de 3.6.1950), entre outros. A política de cotas já existia.
No Brasil, apenas os ex-combatentes foram beneficiados, e mesmo assim com benefícios previdenciários, como a aposentadoria integral, não sendo atingida a liberdade de contratação do empregador. Mesmo sob os regimes autoritários o Brasil sempre seguiu fortes princípios de economia liberal.
Concluímos que os indicativos ora analisados demonstram  que o Direito do Trabalho durante a Segunda Guerra não foi muito favorável ao trabalhador.
 
 


[1] Artigo feito pelo Desembargador do Trabalho, professor e historiador Ivan Alemão, e pelo mestrando do PPGSD-UFF, Diogo Menchise Ferreira.
[2] Lei de Segurança Nacional, Lei n. 38 de 4.4.1935, alterada pela Lei 136 de 14.12.1935, e regulamenta pelo Decreto 431 de 18.5.1938. Pouco depois surgiria o Decreto 4.766 de 1.10.1942, específico sobre a grerra, embora sobre crimes militares. 
[3] RUSSOMANO, Mozart. V., Cometários à CLT, Vol. I, p. 435, Editora Forense, 1990.
[4] PASSARELLI,  Noções de Direito do Trabalho, 1973, Revista dos Tribunais, p.88.