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Artigo: “As reformas do modelo de relações de trabalho e o controle do sindicalismo”


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Ivan Alemão   [2]

Resumo:
O texto analisa as propostas do novo sindicalismo surgido em 1970/80 e as propostas neoliberais da década de 1990, ambas contra a inferência do Estado nas relações de trabalho que haviam sido consolidada na era Vargas. Analisa ainda a nova tendência expressa pelas cúpulas sindicais do final do século XX e início do século XXI, o que é expressa nas propostas do Fórum Nacional do Trabalho, órgão este criado com objetivo modificar a estrutura sindical brasileira. O texto critica as recentes propostas, demonstrando que elas causam retrocesso histórico principalmente quando busca acabar com a autonomia sindical conquistada com a Constituição de 1988 e retoma alguns métodos da era Vargas. Destaca que estas propostas buscam controlar os sindicatos de base, concentrando as principais decisões de interesses dos trabalhadores no poder executivo por meio do ministério do trabalho e de uma nova cúpula sindical que se consolidou nas últimas décadas quando as centrais sindicais passaram a participar da administração de fundos econômicos estatais (FGTS, FAT, etc) e de comissões paritárias do governo. Pela proposta do FNT o poder judiciário deixaria de apreciar o mérito dos litígios sindicais, o que ficaria a cargo de um conselho controlado pelo poder executivo e composto por representantes de centrais sindicais. Esse texto expressa em parte uma tese do autor aprovada no CONAMAT – Congresso Nacional dos Magistrados do Trabalho, realizado em maio de 2004 em Campos de Jordão.


1.Momento histórico : esgotamento do modelo corporativista?

A estrutura sindical consolidada na era Vargas por influência do corporativismo foi, no final do século XX, atacada duplamente. Em primeiro lugar, pelos movimentos grevistas e de oposição sindical sob a influência da esquerda e da Igreja católica, que vieram a criar a CUT – Central Única dos Trabalhadores. Em segundo lugar, pelo neoliberalismo, que remodelou o Estado e as empresas com a finalidade de tornar o sindicato um parceiro nesse processo. Embora antagônicas no cenário político, essas duas tendências renovadoras se identificavam no ataque à interferência do Estado nos sindicatos e, especialmente, nas negociações coletivas. O modelo de Estado interventor da era Vargas passou a ser visto como um entulho legal a ser repelido. Mas, como ambas as tendências dependiam do Estado para sobreviver, procuravam afastá-lo substancialmente no âmbito da negociação coletiva. Em grande parte representando respectivamente trabalhadores e empregadores, essas correntes não deixavam de reivindicar concessões ao Estado, mas queriam seu afastamento no que se referisse à aquisição ou perda de direitos nos contratos de trabalho. Assim, a CUT pregava um novo “contrato coletivo”, acima da lei. E os neoliberais, o “negociado acima do legislado”.
Na década de 1970, os sindicalistas do ABC surgiram como um segmento inovador, considerados como uma corrente autêntica (Almeida, 1980; Antunes, 1988; Cardoso, 1999) ou como reinventores de novas formas de política (Sader, 1995). Expressões como combativos, de base, autênticos, de oposição, de esquerda, de massa, de macacão, anti-patrão eram associadas a essa corrente sindical que aparecia por meio de greves e negociações coletivas, rompendo os limites políticos da época. Propondo o fortalecimento da estrutura de base com vistas a dar sustentação às campanhas salariais, os sindicalistas intensificavam o confronto entre capital e trabalho sem, no entanto, defender a ideologia revolucionária até então predominante na esquerda. Por seu turno, os neoliberais propunham liberdade de negociação com aumento do poder jurídico da representação dos sindicatos, com vistas a adaptá-los ao mercado recessivo, ao modelo pós-fordista. Essa tendência a favor de uma maior eficiência aparecia como modernizadora, competitiva, eficiente e realista, contrapondo-se ao que consideravam dirigismo estatal e populismo.
As discussões na Assembléia Constituinte de 1987/88 e a eleição para a presidência da República em 1989, com a polarização entre Lula e Collor, demonstraram quanto as duas correntes disputavam o domínio de um cenário que (talvez aparentemente) apontava para o fim da estrutura corporativista da era Vargas.
           Na Assembléia Constituinte grande parte das propostas dos sindicalistas foi aprovada, especialmente no âmbito do direito de greve, garantindo ampla liberdade dos trabalhadores decidirem a oportunidade de deflagração e o conteúdo das reivindicações. Entretanto, com a vitória dos neoliberais na eleição de 1989, surgiu uma legislação infra-constitucional anti-greve, anti-estabilidade e contrária às conquistas setoriais, principalmente as relacionadas aos empregados de estatais. Não se regulamentaram as normas programáticas da Constituição de 88, como a da estabilidade e a da greve dos servidores públicos estatutários e as medidas provisórias consolidaram-se, dando interpretação neoliberal ao que se conquistara na Carta de 1988.
Assim, se as décadas de 70 e 80 corresponderam ao avanço do sindicalismo, a década de 90 correspondeu à consolidação do neoliberalismo, com a frouxidão da estrutura sindical e o enfraquecimento de sua legitimidade em função da drástica redução, e até eliminação, de categorias por conta do aumento do desemprego e da informalidade. Nesse período, cresceu o número de sindicatos criados com o objetivo de atuar na Justiça do Trabalho, por meio dos juízes classistas leigos, e de arrecadar contribuições descontadas em folha de pagamento tal a ampliação feita pela Carta de 88 sobre desta modalidade receita, sem a devida regulamentação que evitasse abusos. Assim, embora o nível de legitimidade dos sindicatos tenha decrescido, cresceu a sua representação jurídica, tamanho o incentivo à negociação coletiva. Por vezes a liberdade foi confundida com abuso, ou utilizada para fins fisiológicos diversos dos interesses coletivos. No final do século XX encontramos o desgaste da estrutura sindical e o risco de ser aprovado de forma generalizada a flexibilização nas relações de trabalho.
No início do século XXI, essas duas tendências já não exibem o vigor da inovação e procuram, com esforço, demonstrar algum resultado, o que é dificultado pela permanência das precárias condições de trabalho. No modelo neoliberal, a promessa de que a flexibilização garantiria emprego não apresentou resultados eficazes. No movimento sindical, o desemprego e a descentralização do trabalho (Antunes, 2000) causaram desgaste. Ambas as perspectivas adotam um discurso que implica redefinir um novo pacto social. Em contrapartida, não há no cenário atual outro projeto original que empolgue os trabalhadores. Discussões se prolongam sem grandes novidades, como a do pluralismo versus unicidade sindical, a da crítica ao poder normativo e ao imposto sindical.
            Uma possibilidade de mudança surgiu com a eleição do candidato Lula, que expressava os interesses do movimento sindical. Ele havia incentivado o fortalecimento da representação sindical na Carta de 1988, marco histórico de transformação da estrutura sindical na segunda metade do século XX. A Constituinte de 87/88 efetivamente garantiu a autonomia sindical em relação ao poder Executivo, proibindo-se qualquer ingerência ou interferência por parte da máquina administrativa na entidade sindical. O único poder com competência para coagir os sindicatos passou a ser o Judiciário, por meio de processo judicial, com ampla defesa e decisão fundamentada. Todavia, não se permitiu que o poder Judiciário substituísse as decisões inerentes aos dirigentes sindicais, tomadas nos limites permitidos pela lei (poder discricionário). Em outros termos, embora o Judiciário passasse a ter o poder de fechar uma entidade que agisse contra o cidadão, não poderia interferir na sua gestão. A Constituição de 1988 montou, assim, um sistema o mais democrático possível, preservando a autonomia dos sindicatos e, por outro lado, os interesses públicos, coletivos e do próprio Estado. Mas permaneceu sem solução a histórica polêmica sobre unicidade sindical, poder normativo e imposto sindical. A década de 90 expressou, assim, ampla liberdade e autonomia organizativa, sem regulamentação, e repressão à greve. Já no início do século XXI é o Judiciário que limita essa liberdade desregulamentada, até certo ponto praticada de forma abusiva por muitos sindicatos, impedindo o número ilimitado de diretores em sindicatos para reduzi-lo ao previsto na CLT e impedindo a contribuição descontada em folha dos não filiados, conforme importantes decisões do Supremo Tribunal Federal.
O projeto aprovado na Assembléia Constituinte se desfigurou com o tempo, em função do enfraquecimento daquele movimento sindical ousado da década de 70/80. A CUT se voltou para luta contra as privatizações e a reforma da Previdência Social, e não encontrou espaço para aperfeiçoar suas propostas no âmbito da estrutura sindical. Pelo contrário, os próprios sindicatos filiados à CUT foram seguindo trajetórias diversas, sem qualquer proposta definida, salvo diretrizes gerais como o pluralismo, o fim do imposto sindical e crítica ao poder normativo da justiça do trabalho. As principais lideranças sindicais ou foram para o parlamento ou ingressaram nos órgãos colegiados da Previdência Social, Justiça do Trabalho, do FGT, do FAT, etc. As propostas de comissão de fábrica e autogestão de empresas se desgastaram com as demissões em massa em função do processo de automação.
E o sistema proposto pela Carta de 88 não se desenvolveu. Houve omissão do legislador quanto à regulamentação do registro sindical e da contribuição confederativa (incisos e IV do art.8º da CF). E também foram elaboradas leis que reduziram demasiadamente o impacto do movimento sindical, como a lei de greve (Lei 7.783/89), que retomou a sistemática daquela existente na ditadura militar (Lei 4.330/64). Por outro lado, a Constituição Federal de 1988, preocupada em fortalecer os sindicatos, acabou dando-lhes também poder para flexibilizar os salários (inciso VI do art.7º). Tal fato, se aumentou a representatividade dos trabalhadores, também fez alargar a possibilidade de a negociação ser realizada contra os interesses imediatos dos trabalhadores, por meio das chamadas cláusulas in pejus, praticadas a partir da década de 90.
           O governo Luiz Inácio Lula da Silva preferiu, ao invés de apresentar um projeto com conteúdo definido a respeito das relações de trabalho, criou um espaço de discussão sobre o tema, o que se configurou no Fórum Nacional do Trabalho (FNT). Tal decisão foi implementada por decreto (Decreto 4.764 de 2.6.2003 e Portaria 1.029 de 11.8.2003). Numa época em que o diálogo e o consenso por meio de mecanismos procedimentalistas são valorizados nos meios acadêmicos e políticos internacionais, em contraposição à luta de classe do tradicional marxismo, o novo governo escolheu essa via para modernizar a estrutura sindical e a legislação trabalhista. O próprio decreto apresenta como finalidade a promoção de “consensos”, o que exclui a divulgação das propostas criticadas e rejeitadas. Expressamente, o FNT tem como objetivo “promover o entendimento entre os representantes dos trabalhadores e empregadores e o governo federal, com vistas a construir consensos sobre temas relativos ao sistema brasileiro de relações de trabalho, em especial sobre a legislação sindical e trabalhista (inciso I do art.1º)”.
O “moderno” Fórum, no entanto, retoma a antiga relação tríplice da OIT de 1919, onde se privilegiava a representação de trabalhadores, de empregadores e do governo. Porém, com a diferença de que, agora, os representantes dos trabalhadores e dos empregadores são designados pelo governo a partir de mera indicação feita pelas entidades sindicais. Ou seja, a escolha dos representantes de classes é efetuada fundamentalmente pelo governo, ainda que por sugestão de entidades. As entidades representativas dos trabalhadores valorizadas pelo governo são as centrais sindicais (CUT, Força Sindical, CGT, CGTB, CAT) e uma única confederação (CNTI), o que demonstra a tendência de reunir um colegiado de cúpula que não faça parte diretamente do atual sistema confederativo. Já por parte dos empregadores, em face da inexistência de centrais, os representantes escolhidos são os das confederações da atual estrutura sindical.
            Conforme a Portaria 1.029, que regulamentou o FNT, o governo tem 21 representantes; os trabalhadores, 21; e os empregadores, 21. Além destes, há mais nove representantes de trabalhadores autônomos indicados pelo Grupo de Trabalho sobre Micro e Pequenas Empresas, Autogestão e Informalidade, criado pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), representando diferentes formas de empreendedorismo responsável por novas modalidades de relações de trabalho. Houve aqui a tendência de valorizar as atividades que não estão diretamente ligadas à relação de contrato de trabalho mas fazem parte da economia produtiva. Para este segmento foram indicados membros da Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil LTDA – CONCRAB, Projeto Harmonia – Companhia Industrial do Nordeste Brasileiro (Ex-Usina Catende), Confederação Brasileira das Cooperativas de Trabalho – COOTRABALHO e Organização das Cooperativas do Brasil – OCB.
Os juízes do trabalho e o Ministério Público do Trabalho se fizeram presentes por meio da representação do governo, sendo indicados respectivamente os presidentes da ANAMATRA e da ANPT. Ressalta-se que tais representantes são de entidades de classe, não havendo na FNT qualquer representante direto do poder Judiciário ou do Ministério Público. A atuação do Estado se deu, pois, por meio do poder Executivo, sob a coordenação do Ministério do Trabalho e Emprego.
Embora tenha havido preocupação com a representação paritária, as decisões finais são tomadas pelo governo, por meio da coordenação do FNT, composto por quatro membros de exclusiva confiança do governo. O Fórum ainda possui coordenadores adjuntos, plenária, comissão de sistematização e grupos temáticos, o que o faz parecer uma grande estrutura que se assemelha a um parlamento. Entretanto, não há democracia nas decisões, mas sim uma cadeia de apresentação de sugestões sobre as quais a cúpula decide o que é consenso.


2. Relatório do FNT e a perspectiva de retrocesso

Em março de 2004 foi apresentado o Relatório final, exigido por decreto, contendo o que se chamou de “consenso”. Nele consta um ambicioso projeto de reformulação de toda a estrutura sindical que atinge a negociação coletiva, a greve e o poder Judiciário. Hoje a proposta está sendo veiculada por projetos legais separados. Com base no Relatório, estão sendo apresentados cinco anteprojetos sobre: 1) a criação do Conselho Nacional de Relações de Trabalho; 2) ações coletivas; 3) lei de greve; 4) negociação coletiva e contrato coletivo de trabalho; 5) liberdade sindical.
                   O Relatório é dividido em quatro partes: uma que trata da criação de Conselho Nacional de Relações de Trabalho, outra sobre a organização sindical, outra ainda sobre a negociação coletiva e, finalmente, uma quarta parte que trata da composição de conflitos, onde se inclui a greve.
Numa análise geral, o Relatório visa disciplinar tudo o que diga respeito à estrutura sindical, porém retomando os antigos métodos de controle de cúpula. O objetivo do “consenso”, segundo o FNT, é “fortalecer os sindicatos”, porém, paradoxalmente, estes passam a ser controlados pelo Ministério do Trabalho e pelas centrais sindicais. Na verdade, são essas centrais (basicamente CUT e Força Sindical) que saem fortalecidas. E não à toa, já que foram elas que deram sustentação ao próprio FNT. Isso fica evidente no Relatório quando neste se exige que o futuro CNRT seja composto nos 12 primeiros meses exclusivamente por membros que participaram do FNT..
O Relatório propõe dois tipos de representação sindical: a comprovada e a derivada. A comprovada é a que passa por testes de capacidade, com percentuais de filiados em várias regiões. Já a derivada não precisa de teste de habilitação, dependendo apenas da iniciativa direta de uma entidade de nível superior (item 2, IV.5 e ii, “a”, IV.5.5). Ou seja, o tradicional peleguismo passa a ser transparente. Quem agrada à cúpula sindical não precisa se esmerar em comprovar sua representatividade. E quem deveria conceder a representação sindical é o Ministério do Trabalho, por meio da Secretaria de Relações do Trabalho - SRT (item 4, V.3), ressurgido das cinzas.
A “estrutura sindical” proposta pelo FNT significa um retrocesso histórico, principalmente em relação à autonomia conquistada pelos sindicatos em 1988. O FNT propõe a retomada da interferência do Estado, por meio de um conselho do qual participam representantes dos empregados e dos empregadores.
Como surgiu esta “nova” tendência de controlar o movimento sindical e administrar verbas públicas? As centrais sindicais nunca fizeram parte do sistema confederativo sindical legal, não tendo acesso ao imposto sindical. Porém, desde a década de 1980 elas existem legalmente como associações civis, por força da maior liberdade que o país adquiriu após sucessivas lutas contra a estrutura sindical oficial.
O legislador ordinário, para fazer valer o art. 10 da CF/88, que exige paridade de empregados e empregadores nos órgãos públicos de seus interesses, criou órgãos importantes.
                  Entre eles, o CONSELHO CURADOR DO FGTS e o CODEFAT, que possuem membros indicados por centrais (§3º do art. da Lei 8.036/90 e §3º do art.18 da Lei7998/90). Outras tantas iniciativas administrativas surgiram no mesmo sentido, criando enorme quantidade de comissões paritárias em torno dos ministérios. Durante a década de 90, as centrais sindicais nomearam membros, tais quais os partidos, mas sem se preocupar em ser ou não oposição ao governo, bastando ser do grupo de influência.
Com a criação do FNT, a burocracia sindical encontrou perfeito espaço para se expandir e criar novos aparelhos de dominação, e quem sabe, um fundo econômico sem precedentes. O “consenso” que o FNT apresenta é justamente este: o controle do movimento sindical por meio de fóruns paritários. Hoje, após a vitória eleitoral do PT, já não existem distinções claras entre o Ministério do Trabalho, os empregadores e as centrais sindicais, que cada vez mais se arvoram em representar trabalhadores por decreto.
Embora o sindicalismo de cúpula goze de fatia de poder, os trabalhadores nunca estiveram tão desagregados em seus locais de trabalho como agora. Não há mais contratos de trabalho individuais sólidos e sim contratos curtos, muitos informais, fruto da fragmentação das empresas e do enorme grau de rotatividade da mão-de-obra. A principal causa do enfraquecimento do sindicalismo é o desemprego e não a disciplina da estrutura sindical. Ou seja, o problema não está na enorme quantidade de sindicatos não representativos (como alegam os membros do FNT), mas na falta de empregos sólidos e até mesmo de categorias, que passaram a ser chamadas de “segunda categoria”.
A reforma sindical apresentada pelo FNT não toca em aspectos importantes, como o aumento de poder dos sindicatos de base frente ao mercado de trabalho, valorizando a mão-de-obra no próprio mercado, e o aumento do poder de interferência junto aos órgãos burocráticos que lhes restringem direitos na oportunidade de seu gozo, como a CEF e o INSS. É bom ressaltar que as centrais sindicais não são diretamente pressionadas pelos trabalhadores, que procuram o sindicato (de base) e não a cúpula. Esta, cada vez mais, está voltada para a liberação de verbas para projetos econômicos e sociais.
Quando, nas décadas de 20 e 30, se buscou controlar o movimento sindical, o quadro era de grande concentração operária e a luta de classes era acirrada, após os ventos da Revolução Russa de 1917. O antigo controle sindical surgiu com a finalidade prática de pacificar (ou melhor, conciliar) o acirrado embate. Hoje, a superestrutura desejada pelos mentores do relatório, se efetivada, germinará uma enorme burocracia no movimento sindical. Basta ver que se suprimem recursos financeiros às bases (limitando os recursos provenientes das cláusulas sociais negociadas) e se pretende criar um fundo financeiro (Fundo Social), de enormes proporções (5% da arrecadação das contribuições das negociações coletivas), para ser administrado pelo pretendido Conselho (CNRT).
Não há como justificar essa vasta quantidade de recursos direcionada a um Conselho cuja finalidade é meramente burocrática. O Relatório ainda procura facilitar a representação dos sindicatos filiados às Centrais, aderentes ao sistema e ao estatuto propostos. E dá às centrais sindicais representações para negociar acima dos sindicatos, limitando o poder destes, o que gera sindicalismo de cúpula e hierarquia de cima para baixo.
O Conselho e suas Câmaras
O Relatório propõe a criação do CONSELHO NACIONAL DE RELAÇÕES DO TRABALHO (CNRT), que muito lembra o antigo CONSELHO NACIONAL DO TRABALHO (CNT), criado em 1923. Esse novo conselho teria caráter tripartite, com cinco representantes dos trabalhadores, indicados pelas centrais sindicais; cinco dos empregadores, indicados pelas confederações dos empregadores; e cinco do governo, indicados pelo Ministério do Trabalho.
Além da função genérica de debater proposições sobre o sindicalismo, a CNRT teria duas finalidades básicas. Uma, a de gerir critérios para a utilização dos recursos do Fundo Solidário de Promoção Sindical (item 4 do I.1), o que remete à experiência do CODEFAT e do FUNDO CURADOR DO FGTS. A outra estaria relacionada ao enquadramento sindical e à apreciação de impugnações de registros sindicais.
O CNRT teria duas câmaras bipartites: uma com cinco representantes do governo e cinco dos trabalhadores (indicados pelas centrais) e outra com cinco membros do governo e cinco dos empregadores. Não dá para entender esse critério, paritário na aparência mas não no conjunto. O governo participa das duas câmaras e cada classe, apenas em uma delas. Tais câmaras terão a função de examinar em primeira instância as contestações e os indeferimentos para as representações sindicais. O CRNT aprecia, em segunda instância, o mesmo tema.
Assim funcionava o antigo Conselho Nacional do Trabalho, criado pelo Decreto 16.027 de 30.4.1923. Não existia Ministério do Trabalho, e o CNT era subordinado ao Ministério da Agricultura, que tratava das questões relacionadas ao trabalho em uma época eminentemente agrícola. O CNT, formado por representantes dos empregados, dos empregadores e do governo,
foi o primeiro órgão nacional do tipo no Brasil, sob influência da OIT. Mais tarde, o CNT passou a integrar a embrionária Justiça do Trabalho, sendo seu órgão de cúpula. Com a Carta de 1946, que integrou a Justiça do Trabalho ao Poder Judiciário, o CNT transformou-se no que é hoje o TST. O CNT também tinha duas câmaras, uma da Justiça do Trabalho e outra da Previdência Social.
Estatuto Padrão
O Ministério do Trabalho foi criado logo após o golpe de Vargas, em 1930, para intervir nas lutas de classes e dominar os sindicatos. A forma adotada na década de 30, que se perpetuou até a década de 80, tomou corpo no ESTATUTO PADRÃO, exposto no anexo do Decreto 19.770 de 19.3.1931 e reproduzido em várias portarias. Nesse estatuto, limitavam-se os recursos financeiros dos sindicatos e seus elos políticos.
O controle dos sindicatos por meio da administração sempre foi eficaz. Jarbas Passarinho, ministro do Trabalho na ditadura militar, dizia que era mais fácil prender os comunistas intervindo em seus sindicatos por meio de fiscalização administrativa do que por meio de vagas acusações ideológicas (A Revolução de Março, publicação do MTb, 1969). O Relatório do FNT retoma esse “modelo de estatuto” como paradigma, estabelecido pelo CNRT e submetido à aprovação do poder Executivo (item 3 do IV. 2).
Pluralismo como punição
Ao ser promulgado o que se pretende que seja a futura lei, os sindicatos que aderirem ao novo estatuto terão “exclusividade de representação” (item 1 do IV. 1 e ii, c, IV. 5.5). Já os que não adotarem os critérios do “estatuto padrão” e demais regras do poder Executivo serão, naturalmente, discriminados. A conseqüência imediata será a desconsideração de sua representação frente a outros sindicatos (item 3 do IV. 1) e sua punição será o pluralismo sindical.
Vê-se, assim, que o atual projeto não é adepto do pluralismo, mas permite a sua existência como forma de “bagunçar o coreto” do sindicato “indisciplinado”. Adota-se, assim, um pluralismo que se identifica com “indisciplina”.
Ministério do Trabalho
Segundo o Relatório, o Ministério do Trabalho e Emprego terá o direito de indicar os membros do governo no CNRT, o que torna este órgão subordinado ao próprio Ministério, da mesma forma que hoje funcionam os Conselhos da Previdência Social. Caberá ainda ao Ministério do Trabalho, por meio de sua Secretaria de Relações de Trabalho – SRT, e com base em análises do CNRT, cancelar a prerrogativa da exclusividade da representação do sindicato (item 10 do inciso IV. 1) e conceder ou não representação sindical (item 4 do inciso IV. 3 e 5 e 6 do IV. 6). Antes de 88, cabia à Comissão de Enquadramento Sindical (CES) tal função, agora retomada.
O Relatório propõe a volta da autorização para a criação de sindicatos ou para a sua “representação”, o que, na prática, é a mesma coisa. A autorização dependerá do Ministério do Trabalho, por meio de sua Secretaria de Relações do Trabalho – SRT (item 4 do IV. 3), o que exigirá uma reforma do inciso I do art.8º da CF/88, já citado. Volta a “carta sindical”.
Autonomia sindical
O Relatório, quando se refere à autonomia sindical, considera anti-social a interferência por parte dos empregadores nas organizações sindicais de trabalhadores e vice-versa. Mas é – evidentemente – omisso quanto à interferência do poder Executivo nos sindicatos. O Relatório propõe uma relação confusa, senão dependente, entre as entidades sindicais e o poder Executivo. Concede poder às centrais sindicais, porém as coloca sob a égide do Estado, quebrando os princípios fundamentais da autonomia sindical defendidos e obtidos nas últimas décadas.
Esse modelo que envolve comissões e conselhos formados por integrantes do poder Executivo, juntamente com representantes sindicais, representou a essência do corporativismo. A oferta de poder em troca de controle sempre foi a técnica de barganha utilizada pelos fascistas. A princípio, a oferta pode parecer uma abertura para a participação dos sindicatos no poder, mas em troca cooptam-se as suas lideranças. É neste sentido que Carta de 1937 estabelecia o Conselho de Economia Nacional em seu art.38, embora este não tenha chegado a funcionar em decorrência do fim da Segunda Guerra.
Negociação, impasse e greve
O Relatório é um tanto contraditório quando trata da negociação coletiva em relação à lei. Ora diz que “a lei não poderá cercear o processo de negociação coletiva” (“a”, 1, II), ora que deverão ser “ressalvados os direitos definidos em lei como inegociáveis” (IV) e, ainda, que “os critérios para a definição dos atores serão estabelecidos pela legislação e suas respectivas atualizações” (V).
Após as idas e vindas em torno da lei, o relatório traz uma alarmante novidade. As negociações de nível superior deverão indicar as cláusulas que não podem ser modificadas em nível inferior (VII). Surge aqui uma hierarquia de negociação, o que deixa os sindicatos de base em estado de subordinação.
No caso de impasse, as partes poderão indicar árbitros. Mais uma vez, pretende-se criar árbitros para as relações coletivas de trabalho, o que já é previsto no Brasil desde o Decreto-lei 1.637 de 05.01.1907, que pregava um Conselho Permanente de Arbitragem. Até a atual Constituição de 88, inclusive, propugnou-se pelo árbitro (§2º do art. 114). A velha proposta é novamente posta à prova, agora procurando-se desgastar a Justiça do Trabalho, especialmente o poder normativo, que é o único órgão jurisdicional criativo.
Mas o Relatório não propõe acabar com o encargo da Justiça do Trabalho, apenas o enfraquece. Na impossibilidade da escolha de um árbitro extrajudicial, “o conflito será submetido à arbitragem pública por meio da Justiça do Trabalho” (item 3, VI). Todavia, ao referir-se à greve, o Relatório fala emcontrole judicial” (item 5,III.4) para contratação de serviços necessários a fim de que se evitem danos ao empregador.
Um dos poucos pontos positivos do Relatório e que remonta ao princípio da Carta de 88, aviltado pela lei ordinária (7.783/89), é o que diz quenão deve haver julgamento de objeto nem mérito da greve” (item 7, III). Fora isso, são mantidos todos os meios de controle da greve da lei ordinária, a anterior (Lei 4.330/64) e a posterior.


BIBLIOGRAFIA


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SADER, Eder – Quando Novos Personagens Entram em CenaExperiências e Lutas dos Trabalhadores da Grande São Paulo 1970-80, SP, 2ª ed., Paz e Terra, 1995








[1] Tese apresentada na ANPOCS de 2004; publicada na Revista Justiça do Trabalho, HS Editora, ano 21,n. 245, maio de 2004

[2] Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense, Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD-UFF), Doutor em Ciências Humanas (UFRJ), Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais (UFF), Juiz do trabalho titular da 5ª Vara do Trabalho de Niterói-RJ