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Artigo: Cláusula de recusa coletiva à negociação individual


CLÁUSULA DE RECUSA COLETIVA À NEGOCIAÇÃO INDIVIDUAL

Ivan da Costa Alemão[1]

A negociação individual é o carro-chefe da Reforma Trabalhista de 2017, ultrapassando o tradicional negociado sobre o legislado, feito até então com o sindicato. É certo que essa liberdade de negociação individual normalmente não é bem-vista nem pela Justiça do Trabalho nem pelos sindicatos, já que abre espaço para perda de direitos do trabalhador e – por que não dizer? – perda de poder das referidas instituições. Os defensores da Reforma aguardam que essa maior abertura para a negociação individual venha a corrigir o alto índice de desemprego.

Não pretendo aqui discutir essa antiga questão sobre as longamente aguardadas supostas vantagens da flexibilização, e sim tentar responder a algumas indagações que podem surgir em torno da Reforma. A negociação individual ficou acima da negociação coletiva? Houve alguma mudança na hierarquia das normas? A negociação individual agora é amparada por norma de ordem pública? É possível a negociação coletiva limitar a negociação individual? Se antes os sindicatos estipulavam cláusula para suprimir o intervalo, agora eles podem proibir que o empregado aceite essa supressão? Peço vênia para tecer algumas considerações teóricas antes de enfrentar o tema mais diretamente.

Muito do que se tem chamado de intervencionismo do Estado nas relações de trabalho no Brasil não vai além da predominância da lei sobre o que é negociado diretamente entre empregado e empregador. É o que se denomina lei de ordem pública, também chamada de lei cogente, em contraposição às leis dispositivas ou supletivas.

Segundo Bevilaqua (1929, p. 14), as leis algumas vezes impõem-se como preceito rigoroso, submetendo ao seu império a vontade dos particulares; outras vezes estabelecem apenas as normas, que têm de vigorar na ausência de declaração de vontade dos interessados. No primeiro caso, temos as leis de ordem pública, obrigatórias, coativas. No segundo caso, temos as leis supletivas, que funcionam quando a vontade individual deixa de se manifestar. Seu campo de ação é reservado à autonomia de vontade dos particulares.

A rigidez da legislação do trabalho reside justamente na sua imperatividade, chegando o contrato de trabalho a se assemelhar a um contrato de adesão, o que, historicamente, é encarado como forma de proteger o trabalhador, fraco e subordinado, do empregador, forte e rico. Porém, para além de um contrato de adesão com direitos e deveres já detalhados pela legislação, no contrato de emprego uma parte fica subordinada à outra, sendo que a lei imperativa de nosso ordenamento jurídico impede que eventuais alterações possam ser prejudiciais ao empregado (artigo 468 da CLT). É o contrapeso que “compensa” o estado de subordinação a que se submete o trabalhador.

É indubitável que na vida de um contrato de trabalho haja constantes modificações, sejam as consideradas efetivas alterações, de que trata o referido artigo 468 da CLT, sejam apenas pequenas mudanças (ius variandi), muitas até impossíveis de serem evitadas. Isso porque o contrato de trabalho é uma relação humana, de convivência constante, que sofre com as vicissitudes de mudanças pessoais, sendo que a própria sociedade também se modifica indefinidamente em seu aspecto econômico e técnico. Vejam, por exemplo, a transformação que o WhatsApp provocou na vida de todos, fazendo com que a distância e o horário não sejam mais impedimentos para a comunicação.

A legislação do trabalho tem pouco ou quase nada de concessão direta por parte do Estado em relação ao trabalhador. O “Estado” atua legislando, mas sem parar e sem pagar. Pelo contrário, ele tem direito a receber tributos do empregado e do empregador quando existe um contrato. A história do Direito do Trabalho no Brasil relata os direitos que os trabalhadores foram adquirindo desde que estivessem empregados, ou seja, desde que fossem pagos por um empregador. A possibilidade de um Estado Social na forma clássica, protetor do cidadão, nunca existiu no Brasil. Só há pouco tempo foram criados alguns fundos públicos para gerir concessões econômicas para o trabalhador, como o seguro-desemprego.

Pois bem, um dado historicamente novo no Direito foi a introdução de uma norma intermediária, entre a lei e o contrato individual. Trata-se do contrato coletivo, conforme chamado pelos italianos, ou convenção coletiva, de acordo com os franceses. Essa novidade flexibilizou a rigidez da legislação da era napoleônica, que não permitia qualquer corpo intermediário entre a lei e o cidadão. A “vontade geral da lei”, de que falava Rousseau, não deixou de existir com os contratos coletivos, apenas ela própria passou a permitir que uma norma privada a substituísse em certas situações. Isso já existia com a negociação individual (lei dispositiva). A grande diferença é que a liberdade individual de negociação passou a poder ser suplantada pela liberdade da “vontade coletiva”, ainda que essa mudança não tenha ocorrido do dia para a noite.

A partir da década de 1920, a negociação coletiva passou a ter caráter de norma abstrata, deixando de ser um feixe de contratos individuais que poderiam ser rompidos individualmente por cada trabalhador. Procurou-se, em alguns momentos, equilibrar o direito individual com o coletivo, porém sem sucesso. Pelo antigo Decreto nº 21.761, de 23 de agosto de 1932, que regulamentou a convenção coletiva de trabalho no Brasil, o trabalhador individualmente poderia se exonerar de qualquer compromisso, demitindo-se por escrito no prazo de 10 dias da assembleia (§ 2º do artigo 5º). Ainda era o direito coletivo com ressalva garantidora do direito individual, ou seja, este ainda estava acima daquele. Não posso deixar de lembrar que o abuso de cláusulas in pejus, eventualmente praticadas por alguns sindicatos, também pode incentivar a tentativa de o indivíduo se desligar do coletivo, o que não é permitido por nosso ordenamento jurídico atual, e a Reforma não mexeu nisso.

A aceitação social da negociação coletiva enquanto meio de pacificação social contribuiu para a aceitação jurídica de que a vontade coletiva, por meio de suas assembleias e representada pelo sindicato, possa se sobrepor à vontade individual. No Brasil, atualmente, essa representação sindical é ampla, de toda a categoria, e não apenas dos sócios, tendo sido consagrada pela Constituição de 1988.

Pois bem, o que a Reforma Trabalhista de 2017 trouxe de novo?

Se ela não revolucionou o status da hierarquia das leis, da vontade coletiva sobre a individual, pelo menos pretendeu ampliar o campo da lei dispositiva nas relações de trabalho, o que não deixa de significar um retorno aos primórdios da legislação do trabalho, quando o Código Civil ainda era o referencial do contrato. E isso está estampado na Reforma quando ela trata da interpretação da norma coletiva, tendo o novo § 3º do artigo 8º da CLT se referido expressamente ao Código Civil, para limitar as decisões judiciais que declaram nulas as cláusulas coletivas. Para a Justiça do Trabalho declarar nulas cláusulas coletivas agora é preciso que estas tenham infringido a forma prescrita em lei, que uma das partes não tenha capacidade jurídica ou que o seu objeto seja ilícito. E a própria Reforma arrola o que entende como objeto ilício no artigo 611-B.

Embora utilizando o Código Civil, a regra teve a finalidade de aumentar o poder da negociação coletiva, pelo menos em relação à Justiça do Trabalho. A facilidade de se declarar nulas cláusulas coletivas isoladas, ou mesmo de interpretá-las condenando menos ou mais, faz com que se desfigure o que foi negociado em seu conjunto. Nenhum reclamante pleiteia a nulidade de toda uma convenção coletiva, mas apenas de uma cláusula que o prejudica, sem renunciar às demais. As nulidades isoladas fazem com que a Justiça do Trabalho acabe por gerar uma nova convenção coletiva, mesmo que isso não seja consciente nem planejado. Se isso é bom ou não, é outra questão. O fato é que a Reforma fortaleceu a negociação coletiva em face da Justiça do Trabalho, e também enfraqueceu a própria negociação coletiva, com a ampliação do espaço para a negociação individual. A Reforma criou este novo teste para os sindicatos e para a Justiça do Trabalho, pois a ampliação do âmbito da negociação individual enfraqueceu tanto aqueles quanto esta.

É bem verdade que não existe nenhum conflito institucional entre sindicatos e Justiça do Trabalho. A Orientação Jurisprudencial nº 342 da SDI-1 do Tribunal Superior do Trabalho, em sua redação original de 2004, considerou ilegais os acordos coletivos com restrição de intervalos, criando um mal-estar entre os negociadores. Por outro lado, muitos entendimentos da Justiça do Trabalho fortaleceram a negociação coletiva, como os que a exigiam para a realização de banco de horas (inciso V de 2011, da Súmula 85) ou para a criação de escala de 12x36 (Súmula nº 444, de 2012). A Reforma, entretanto, passou a permitir a negociação individual para a escala de 12x36 e para o banco de horas, nesse caso por até seis meses.

O largo uso de lei de ordem pública na legislação do trabalho fez com que se possa até confundir o inegociável com o irrenunciável, e com certa razão. O inegociável pode ser uma decisão própria do detentor do direito, portanto, é mais amplo que o irrenunciável, que não permite que o titular se desfaça de seu bem. A lei cogente, ao proibir que o trabalhador negocie certos direitos, acaba por torná-los irrenunciáveis. Certamente, são irrenunciáveis os direitos indisponíveis, como a saúde, a profissão, a dignidade pessoal. Normalmente, podem ser renunciáveis os bens meramente econômicos, aqueles facilmente transacionados em acordos judiciais trabalhistas. Direitos materiais que afetam a necessidade de alimentação e a proteção da família em geral são privilegiados. Não há, no entanto, um critério rígido ou científico para definir o que é irrenunciável, devido às mudanças naturais ocorridas através do tempo e por meio da jurisprudência e ao alto grau de subjetividade utilizado em sua definição.

A amplitude da lei de ordem pública nas relações de trabalho fez com que fosse possível imaginar que o trabalhador nunca possa renunciar a direitos, regra que inexiste expressamente na lei, pelo menos de forma genérica. A regra ampla prevista na CLT (artigo 468) é a da alteração não prejudicial ao trabalhador, que, numa conjugação de trocas, permite a renúncia de um direito em prol de outro até maior. Claro que nessa troca não podem se incluir direitos indisponíveis, como o de personalidade e cidadania. Quanto às regras iniciais de contratação, estão elas previstas no artigo 444 da CLT. A Reforma criou um novo parágrafo para esse artigo, que pode ter gerado um direito à renúncia, tema de que trataremos mais adiante.

O novo artigo 611-B da CLT proíbe a negociação coletiva sobre o que considera “objeto ilícito”, usando aqui uma expressão bem civilista para analisar a validade do contrato coletivo. O artigo estabelece itens que passam a ser inegociáveis coletivamente. Se há proibição para que tais bens sejam negociados coletivamente, aparentemente também há proibição para que sejam negociados individualmente. Isso decorreria de o fato de o poder de negociação do sindicato se sobrepor ao individual. Mas esse poder não é absoluto, já que a lei estabelece casos raros em a negociação coletiva não pode atingir direito individual de manifestação, como o da liberdade de filiação e a de contribuição financeira. Há aqui uma restrição específica ao amplo poder sindical de representar individualmente os membros de sua categoria.

No mérito, os itens proibitivos seguiram critérios ao gosto subjetivo do legislador, já que entre eles encontramos direitos indisponíveis, como o da aposentadoria, e outros meramente econômicos, como o valor nominal do décimo terceiro salário. Certamente, os critérios foram bem variados, abrangendo desde a preservação de direitos garantidos constitucionalmente, os quais a lei menor não poderia modificar, até critérios de mercado. Mas não pretendo aqui descer à analise pontual de cada um dos 30 incisos do referido artigo, o que estenderia em demasia nosso pequeno artigo.

A Reforma chegou a criar uma regra em nosso ordenamento, qual seja, a de permitir que na negociação individual o empregado renuncie a cláusulas coletivas, desde que seja portador de diploma de nível superior e perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social. O novo parágrafo único do artigo 444 da CLT expressa a “preponderância [individual] sobre instrumentos coletivos”. Esse âmbito de renúncia abrange aqueles que o sindicato havia negociado “acima da lei”. Na expressão do novo artigo 611-A, “a convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei”, quando trata dos itens nele arrolados. Ou seja, a renúncia não é total, referindo-se apenas aos itens passíveis de negociação ali arrolados, que envolvem principalmente jornada de trabalho.

Destaco aqui as expressões “preponderância sobre instrumentos coletivos” (parágrafo único do artigo 444) e “prevalência sobre a lei” (artigo 611-A). O individual pode se sobrepor aos instrumentos coletivos e estes sobre a lei. A nova redação do artigo 620 fixa que “os acordos coletivos de trabalho sempre prevalecerão sobre as cláusulas estipuladas em convenção coletiva de trabalho”. Haveria alguma nova regra de hierarquia das normas e dos contratos? No âmbito da lei, não, apenas aumento de lei dispositiva. No âmbito dos contratos, houve aumento do espaço de negociação individual sobre o da negociação coletiva. Mas esse espaço negocial individual pode ser restringido pela própria negociação coletiva. Eis a questão.

Pretendo concluir este breve texto com uma hipótese. Por exemplo, um contrato coletivo pode proibir que um trabalhador individualmente pactue um banco de horas ou uma jornada de 12x36? Entendo que sim.

Se considerarmos que o direito à negociação individual é uma norma de ordem pública, nem mesmo a negociação coletiva poderá restringi-lo. Porém, sendo a negociação individual uma faculdade, uma manifestação livre de vontade, e sendo o sindicato representante legal de direitos individuais, entendo que é possível o sindicato recusar a possibilidade de negociação individual. O sindicato pode dizer o que é inegociável individualmente por seu representado. Não chega exatamente a ser uma proibição, com caráter de decisão hierárquica de autoridade, mas, como dito, uma recusa em nome do próprio trabalhador. Trata-se de recusa a priori.

Essa possibilidade de uma recusa coletiva à negociação individual é possível em função da representação que o sindicato possui para a defesa de direitos individuais da categoria, expressa constitucionalmente no inciso III do artigo 8º da Constituição Federal. Trata-se de um permissivo constitucional que certamente a Reforma Trabalhista, por ser uma norma infraconstitucional, nem poderia mexer, assim como a outra do mesmo nível hierárquico, de que obriga a participação do sindicato na negociação coletiva (inciso VI do artigo 8º da CF).

Os limites dessa recusa coletiva à negociação individual são encontrados na própria Constituição Federal, como a liberdade de filiação (inciso V do artigo 8º), entre outros limites, muito dos quais alocados no artigo 5º da Carta Maior.

Ao que parece, A Reforma Trabalhista de 2017 reduziu o “poder” interpretativo da Justiça do Trabalho, aumentou o espaço para a negociação individual e até restringiu itens de negociação coletiva, mas os poderes sindicais de representação e de negociação coletiva permaneceram. Talvez os sindicatos nunca tenham se defrontado com uma responsabilidade tão grande.



Referência bibliográfica

BEVILAQUA, Clovis. Teoria geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 2ª ed., 1929.









[1] Desembargador do Trabalho do Rio de Janeiro e Professor Doutor da Universidade Federal Fluminense (UFF). Artigo escrito em setembro de 2017.